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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

tempo

22.10.19

 

Põe o tempo o cuidado

que ignora o ouvido

e que o livro não dá.

É dele este silêncio,

este saber,

este ouvir e calar.

(...)

É dele o pouco a pouco,

o aproximado,

o justo. 

(...)

É doce e grande 

o tempo.

(...)

Põe o tempo o cuidado.

Mas não põe as estrelas.

 

Perde o olhar o brilho.

Mas o mar não se perde. 

 

 

 

António Ramos Rosa in Antecipação à Velhice - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

 

 

proveitos

26.09.19

Ora a acção é sempre mais proveitosa que a propaganda, excepto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como propagandistas - os grandes oradores, capazes de electrizar multidões e arrastá-las atrás de si, ou os grandes escritores, capazes de fascinar e convencer com os seus livros. 

 

Fernando Pessoa - O Banqueiro Anarquista (1922)
Antígona (2018)

 

 

 

who i am: antiga

23.08.19

Já chegou o homem novo, aquele

por Whit-

man anunciado, embora

sujeito a insuspeitos 

refrões financeiros. Basta 

que um fale 

conhecemo-los todos, todos

igualmente superficiais,

trazem na lapela o sinal

emblemático da sua pobreza 

de espírito. Outros trazem mais 

a regra da indiferença 

e nós, as mulheres, cobrimo-nos 

com as pinturas da guerra 

declarada ao sucesso 

do homem novo. Moderno

como um fogo cáustico, tudo

devora, a Natureza 

e as próprias raízes, tudo

sobrevoa cego de apenas ver 

em diferido. 

 

Nós ouvimos o real uivar

prisioneiro da sombra, o mapa distor-

cido, a cartografia desta doença 

planetária que murcha e desagrega 

o cérebro à lareira, no bramido

à vida pondo fim. Desapareceu 

dos lábios a doce palavra 

«companheiro», somente

a beiça voraz escancara dentes

dourados, rupestres, as presas

do bom hálito do homem novo.

Tanto faz ficares connosco, porque

partir é onde ilusionistas 

e agências nos transportam, só

a cortês nesga do rio nos leva:

ásperas, pedra-pomes. Desgraça,

demais confiámos o corpo à margem

calma, aos risonhos bebedouros, - insinuavam:

pejados de alma, mas alma, alma,

é coisa para antigos

livros poéticos. 

 

Paulo da Costa Domingos in OUVIMOS O REAL

 

 

Paulo da Costa Domingos - Carmina (1971 - 1994)
Antígona (1995)

 

 

 

 

O Banqueiro Anarquista

30.05.19

Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo.

Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma “revolução” foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficámos miseravelmente os mesmos disciplinados que éramos.

Trabalhemos ao menos – nós, os novos – por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa.

 

Fernando Pessoa

 

 

in https://antigona.pt/collections/5-euros/products/o-banqueiro-anarquista

comportamento perigosamente seguro

09.05.19

Não existe meio mais seguro para fugir do mundo do que a arte, e não há forma mais segura de se unir a ele do que a arte.

 

Johann Goethe

 

 

 

executar o destino

19.03.19

Se fôssemos capazes de raciocinar, deveríamos resignar-nos a esta evidência, de que o nosso destino é perfeitamente impossível de conhecer, de que qualquer conjectura é arbitrária e perfeitamente carente de qualquer fundamento real. Mas os homens só muito raramente são capazes de raciocinar, quando o que está em jogo é o seu próprio destino; preferem em todos os casos as posições extremas; por isso, conforme os seus caracteres, entre nós uns convenceram-se imediatamente de que tudo está perdido, que aqui não é possível viver e que o fim é inevitável e próximo; outros convenceram-se de que, apesar da extrema dureza da vida que nos espera, a salvação é provável e não está longe e, se tivermos fé e força, voltaremos a ver as nossas casas e as pessoas amadas. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

 

 

 

até que

15.03.19

... até que um dia 

já não terá sentido o amanhã.

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

 

duas classes de homens

14.03.19

Queríamos levar o leitor a considerar como o Lager foi também, e em notável medida, uma gigantesca experiência biológica e social.

Fechem-se entre arames farpados milhares de indivíduos diferentes em idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e obriguem-se, nesse lugar, a um regime de vida constante, controlável, idêntico para todos e abaixo de todas as necessidades; é quanto de mais rigoroso um experimentador poderia instituir para estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta pela vida.

Não acreditamos na dedução mais fácil e óbvia: que o homem é fundamentalmente brutal, egoísta e estulto na sua maneira de actuar, quando todas as superstruturas civis lhe são tiradas, e que o Häftling seria, portanto, o homem sem inibições. Julgamos, pelo contrário, que, em relação a isso, nada mais se pode concluir, a não ser que, diante das carências e do mal-estar físicos obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.

Parece-nos, no entanto, digno de atenção este facto: verifica-se que existem entre os homens duas classes particularmente bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. Outros pares de contrários (os bons e os maus, os sensatos e os insensatos, os cobardes e os corajosos, os desgraçados e os afortunados) são muito menos nítidos, parecem menos congénitos, e sobretudo admitem graduações intermédias mais numerosas e complexas. 

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

 

 

tráfego de colheres

13.03.19

Além disso, os enfermeiros tiram lucros enormes do tráfego das colheres. O Lager não fornece colher aos recém-chegados, apesar de não se poder comer de outra forma a sopa semilíquida. As colheres são fabricadas na Buna, à revelia e nos intervalos, pelos Häftlinge que trabalham como operários especializados em Kommandos de ferreiros e latoeiros: trata-se de utensílios grosseiros e maciços, extraídos de chapas trabalhadas a martelo, frequentemente com o cabo afiado, de forma a servir ao mesmo tempo como faca para cortar o pão. Os próprios fabricantes vendem-nas directamente aos recém-chegados: uma colher simples vale meia ração, uma colher-faca três quartos de ração de pão. Ora, é permitido por lei entrar no Ka-Be com a colher, mas não sair com ela. Aos doentes curados, no acto da saída e antes da entrega da roupa, a colher é requisitada pelos enfermeiros, que a põem à venda na Bolsa. Juntando as colheres dos doentes de saída às dos mortos e dos seleccionados, os enfermeiros perfazem por dia a quantia correspondente à venda de cerca de cinquenta colheres. Pelo contrário, os que tiverem alta são obrigados a voltar ao trabalho com a desvantagem inicial de meia ração de pão a gastar para a aquisição de uma nova colher (...) 

Em conclusão: o roubo na Buna, punido pela direcção civil, é autorizado e encorajado pelos SS; o roubo no campo, reprimido severamente pelos SS, é considerado entre os civis como uma normal operação de troca; o roubo entre Häftlingue geralmente é punido, mas a punição atinge com igual gravidade o ladrão e a vítima. Queríamos agora convidar o leitor a reflectir sobre o que podiam significar no Lager as nossas palavras «bem» e «mal», «justo» e «injusto»; cada um julgue, na base do quadro que traçámos e dos exemplos acima referidos, quanto do nosso comum mundo moral podia subsistir aquém do arame farpado. 

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

Black Square

Kazimir Malevich