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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

21
Ago20

a barreira que une

Cecília

Se o Raimundo, o pai dele, não lhe tivesse dado biberões de vinho, talvez fosse um homem como outro qualquer (...) 

Tudo isso podia ter acontecido se o pai não se tivesse intrometido entre ele e os seus objectivos. Era a sua ideia de que a beber leite o filho não se fazia um homem que o tinha condenado a viver daquela forma. Mas esse ódio não era de agora. Já em pequeno sentia que ele era o empecilho que não o deixava ter uma vida melhor. Desejava que ele não existisse, mas logo a seguir fechava as mãos e fazia força para contrariar esses sentimentos.

«O pai merece perdão». pensava. «O pai merece perdão.»

Era uma coisa má, aquilo que sentia. E ele sabia disso. Tinham-lhe ensinado que era preciso amar o próximo porque os homens eram todos irmãos. Percebia que isso criava uma barreira entre o bem e o mal, entre o que se podia e o que não se podia fazer em benefício de todos. 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

 

 

18
Dez19

gosto pelo medieval

Cecília

As visões românticas da Europa medieval omitem os requintados instrumentos de tortura e ignoram candidamente a taxa de homicídio de então, trinta vezes superior à actual. Os séculos pelos quais sentimos nostalgia eram tempos em que a mulher de um adúltero podia ver o nariz amputado, uma criança de sete anos podia ser enforcada por roubar um saiote, a família de um prisioneiro teria de pagar pelos seus grilhões, uma bruxa podia ser serrada ao meio e um marinheiro açoitado até ficar em carne viva. 

 

Afonso Cruz_ O macaco bêbedo foi à ópera - Da embriaguez à civilização (2019)
Fundação Francisco Manuel dos Santos e Afonso Cruz (2019)

 

 

 

14
Nov19

mulher(ão) II

Cecília

Ao contrário do duque, não tinha qualquer vontade de que me sentasse em silêncio junto dele - longe disso. Adorava inteligência e conversa. 

 

Wray Delaney - Memórias de Uma Cortesã  (2016)

Quinta Essência, Oficina do Livro (2017)

 

 

Deux mères (1888)

Maxime Faivre

 

 

12
Nov19

conhecimento factual

Cecília

gostaria de deixar claro que a nostalgia extremada ou o optimismo cego no progresso, e especialmente num crescimento histérico e infinito, são irracionais e que o uso da temperança e de algum conhecimento factual poderão trazer coisas boas no momento de pesar o que pode ou deve ser preservado do passado, quais as importantes conquistas do presente, e o que é desejável no futuro. 

 

Afonso Cruz_ O macaco bêbedo foi à ópera - Da embriaguez à civilização (2019)
Fundação Francisco Manuel dos Santos e Afonso Cruz (2019)

 

 

 

20
Out19

memórias que importam (ou a simplicidade que fortifica)

Cecília

O pai, exímio tocador de cavaquinho e harmónica, era o chefe de uma banda familiar onde todos cantavam e dançavam, congregando, mesmo em alturas mais difíceis, um clima de festa que filho algum conseguiu esquecer. 

 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

 

 

14
Out19

let bloom (don't blow)

Cecília

Eu era teimosa, ele era teimoso. Não me lembro do motivo, sei que nos pegámos os dois. Eu era muito mais pequena, devia-me ter calado. Mas começámos à tareia e o meu pai não gostou. Deu uma tareia nele. Eu fugi  e meti-me debaixo da cama. O meu pai procurou-me até ao fim, não tas vou perdoar. E depois, a tareia que tinha dado ao António deu-me a mim também - relato de Maria Amélia. 

Mas não há memórias que o descrevam a subir às árvores para ir aos ninhos, ou outras tropelias de miúdos. Já João, o mais velho, meteu um belo dia a irmã dentro de uma arca e esqueceu-se dela. Maria de Lurdes ia morrendo asfixiada, enquanto ele, aflito, a procurava sem se recordar onde a fechara dessa vez. Outra vez, guardou a irmã Amélia, uma criança minúscula, e ainda hoje uma mulher muito pequenina, dentro de uma mala de viagens. Depois pôs-se a correr pelo quintal, abanando a mala de um lado para o outro, até que ela se abriu e deixou cair a miúda completamente atordoada no meio do canteiro das alfaces. António, contudo, não deixou na memória dos irmãos episódios semelhantes:

- Desde muito miúdo já dizia que queria ser músico. Cantava as cantigas que ouvia na rádio e outras que inventava ele próprio (...) E a minha mãe assim: Toninho, vai cortar um bocadinho de erva para os coelhos, e ele: haviam de morrer todos! Sentava-se no quintal e começava a cantar. E a minha mãe: A erva para os coelhos, António? E ele, ó está bem, está bem! - Maria Amélia Ribeiro Costa recordá-lo-á, para sempre, ensimesmado e misterioso, muito solitário e sempre à procura de espaço para abrir a voz. - Ele já tinha dom. Nasceu com ele. Ele era diferente. Foi sempre diferente de nós todos. Vinha de férias e não gostava que ninguém o perturbasse. Há um penedo em cima, do outro lado da rua, ele sentava-se ali, muitas vezes, a escrever. Dizia: Vou para ali para cima. Não quero que ninguém chame por mim. Se alguém vier, eu não estou para ninguém. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

08
Out19

gestos e atitudes

Cecília

Pelas seis horas da manhã de 3 de dezembro de 1944 (...) Jaime e Deolinda de Jesus Ribeiro foram pais do quinto filho (...) o menino veio a receber o nome de António Joaquim Rodrigues Ribeiro (...) 

Jaime Ribeiro era parco de palavras. Minhoto pequeno e encorpado, homem de uma força extraordinária, saía-se melhor com música no que tocava a expressar sentimentos. O que não conseguia dizer, fazia o cavaquinho dizer por si. Ou a concertina. Os seus gestos, porém, eram de uma enorme eloquência. Ao longo de todo o mês seguinte, Deolinda de Jesus descansou, rodeada de «mimos». Não estava autorizada a trabalhar, fosse no que fosse, e era alvo das maiores atenções por parte do marido. Os filhos guardam a memória desses cuidados que deixavam os próprios vizinhos estarrecidos pela novidade de um lavrador, homem do campo e sem estudos, rodear a mulher, sempre que dava à luz, de tamanhos desvelos. Assim, e nos primeiros dias após o nascimento de uma criança, era o marido quem lhe levava o tabuleiro das refeições à cama. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

 

Homens pobres são melhores namorados

 

30
Jan19

sem

Cecília

 

Aqui esperavam-nos o comboio e a escolta para a viagem. Aqui recebemos as primeiras pancadas: e o facto foi tão novo e insensato que não sentimos dor, nem no corpo nem na alma. Só um profundo espanto: como se pode bater num homem sem raiva?

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

Scène du massacre des innocent - 1824

Léon Cogniet

 

 

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