Ele não estava bem e não cantou bem, mas o produto final era muito melhor do que ouvíamos habitualmente. Aborreci-me por não poder aplaudir sem reservas. Mas se se mente a um homem sobre o seu talento só porque ele está sentado à nossa frente essa é a mais imperdoável das mentiras, porque isso encoraja-o a continuar, e para um homem sem talento é a pior maneira de lhe destruir a vida. Mas muita gente fazia isso, sobretudo amigos e parentes.
Charles Bukowski – Mulheres (1978) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2003)
Recém-chegado da tropa no ultramar, no início dos anos 70, António ainda não pertencia ao meio musical. Mas, pela forma de estar, de vestir, e de ser, começava a ser um Extraterrestre, num país onde era pecado ser diferente, numa sociedade que tranquilizava os seus terrores arcaicos com a estandardização. «Sempre Ausente», um poema do álbum Anjo da Guarda, ilustra estes tempos e esta busca:
Diz-me que solidão é esta
Que te põe a falar sozinho
Diz-me que conversa
Estás a ter contigo
Diz-me que desprezo é esse
Que não olhas p'ra quem quer que seja
Ou pensas que não existe
Ninguém que te veja
Que viagem é essa
Que te diriges em todos os sentidos
Andas em busca dos sonhos perdidos
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Na cidade, as propostas para mobilar as casas estão recheadas de produtos fantásticos. Frigoríficos cheios de comida pronta a ser confeccionada. Aspiradores, que permitem que a dona de casa rodopie pelo seu lar, limpando-a como quem brinca. Máquinas de lavar roupa, que evitam a canseira dos tanques onde à força de braços e mãos que esfregam, torcem, batem, na faina das barrelas domésticas, se lavam as roupas da casa. Panelas de pressão, que conseguem amaciar o mais rijo naco de carne, enquanto o diabo esfrega um olho. Na cidade, as tarefas domésticas diárias, a acreditar nos maravilhosos anúncios, são meros passatempos que lindas mulheres praticam alegremente. E toda a gente parece resplandecer de asseio. Já no campo, um luxo chama-se telefonia. Um sonho chama-se telefone. Visitas extemporâneas e de última hora... não existem. Visitas só a do padre ou a do médico. Não costumam ser bom sinal. Vizinhos? Ajudam-se, mutuamente, quando é preciso, mas ninguém entra pela casa de ninguém a pedir comida e a reclamar jantares: era só o que mais faltava. E os gestos quotidianos - varrer, limpar, cozinhar, arar os campos, pensar o gado, mondar, ceifar, enxertar as árvores, colher os frutos, apanhar caruma, acender a lareira -, são obrigações. Implicam muitas horas de trabalho esforçado, e não se pensa nelas como passatempos. Ter comida para cozinhar, isso sim, é uma alegria. Matar a fome a todos, aí está o verdadeiro prazer.
Na cidade, famílias ostensivamente felizes têm crianças, quase sempre louras e inevitavelmente lindas, que adoram pudim Royal e «gostam e necessitam de Milo», o fortificante mágico sem o qual as suas pobres cabecinhas encaracoladas tombam de exaustão sobre imaculados cadernos e livros da escola. Mas as cabecinhas das crianças louras ou morenas dos campos, não tombam sobre cadernos e livros imaculados. Se tombarem, uma palmada do professor ou da professora fornece toda a energia de que precisam para se levantarem imediatamente. Portanto, ali o Milo não faz falta nenhuma a ninguém. Até porque o dinheiro não chega para esses luxos... finalmente, no campo, não se fala em beleza o tempo todo, nem se evocam vocábulos como elegância por dá cá aquela palha. De resto, o mais elementar sentido de decência tornaria impensável que as mulheres corressem de braços no ar ao encontro dos seus homens, quando estes chegam a casa, suados, sujos de terra, exaustos de trabalhar, para lhes servirem algo de tão insípido como um estupendo caldo Maggi.
Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018) Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)
Em momentos críticos, a ajuda dos irmãos César e José Paulo, e de primos direitos como Silvério e outros foi essencial para lhe dar algum ânimo e esperança nos últimos 14 anos de vida. A maior parte dos primos direitos vinha do lado Amaral e Abranches que, diga-se em abono da verdade, no verão de 1940 não o aplaudiram exatamente. Esses primos tinham carreiras e famílias a proteger, e estavam bem conscientes da verdadeira natureza do Estado Novo, sabiam que podiam ser atingidos por ricochete devido ao gesto rebelde do primo Aristides - que se tornaria um proscrito e uma espécie de refugiado no seu próprio país.
Um primo de Aristides, Adolfo Abranches Pinto, que foi general e ministro do exército durante quatro anos, entre 1950 e 1954, que exerceu funções de adido militar em Washington D.C. [...] foi chamado a participar em visitas de comissões internacionais aos campos de concentração, tendo de efetuar relatórios descrevendo o horror que aí viu e a vergonha que são para a espécie humana. Um dia, o primo Adolfo disse para a sua família mais próxima: «Compreendo a posição e a atitude do Aristides durante a guerra. Ele prestou um grande serviço à Humanidade!»
Dizer estas palavras é revelador de bons sentimentos, mas teria sido muito mais benéfico e corajoso da parte de um general - um homem de armas - dizê-lo diretamente a Aristides e a César. Mas a verdade é que o regime ditatorial de Salazar não existia propriamente para estimular a coerência e a dignidade. E as paredes tinham ouvidos...
António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes (2017)