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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

palavra a existências demasiado ocupadas em existir

04.05.17

   

 

escritor negro 8.jpg

 

 

créditos imagem: http://www.ivettedurancalderon.com/articulos/Reportajes/Escritores-fantasmas-escritores-por-encargo-escritores-sin-firma-escritores-negros-o-negros-de-la-literatura-quienes-son-a-que-se-dedican.../213

 

 

 

Declara-se indignado por alguém poder fazer uso indevido do meu nome, e pronto a ajudar-me a acabar com a fraude, mas acrescenta que afinal de contas não há motivo para me escandalizar, porque na sua opinião a literatura só é válida pelo seu poder de mistificação, tem na mistificação a sua verdade; portanto uma falsificação, enquanto mistificação de uma mistificação, equivale a uma verdade elevada à segunda potência. 

    Continuou a expor-me as suas teorias, segundo as quais o autor de cada livro é uma personagem fictícia que o autor existente inventa para a tornar o autor das suas ficções. Muitas das suas afirmações até as compartilho, mas evitei dar-lho a entender. Diz que se interessa por mim sobretudo por duas razões: primeiro, porque sou um autor falsificável; segundo, porque pensa que tenho os dotes necessários para ser um grande falsificador, para criar apócrifos perfeitos. Poderei pois encarnar o que para ele é o autor ideal, ou seja, o autor que se dissolve na nuvem de ficções recobre o mundo com o seu espesso invólucro. E como o artifício para ele é a verdadeira substância de tudo, o autor que inventar um sistema de artifícios perfeito conseguirá identificar-se com o todo. (...)

    Pensando bem, este escritor total poderia ser uma pessoa muito modesta: o que na América se chama o ghost-writer, o escritor fantasma, uma profissão de reconhecida utilidade embora não de muito prestígio: o anónimo redactor que dá forma de livro ao que têm para contar outras pessoas que não sabem ou não têm tempo para escrever, a mão escrevedora que dá a palavra a existências demasiado ocupadas em existir. Se calhar a minha verdadeira vocação era essa e falhei-a. Podia ter multiplicado os meus eus, anexar eus alheios, fingir os eus mais opostos a mim e mais opostos entre si. 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

revolução e novos tempos

25.04.17

Com a revolução há pessoas que mudam tanto que ficam irreconhecíveis e pessoas que se sentem iguais a si mesmas ainda mais do que antes. Deve ser o sinal de que já estão prontas para os novos tempos. 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

De maneira que quem quiser, vem comigo para Lisboa e acabamos com isto. Quem é voluntário sai e forma. Quem não quiser vir não é obrigado e fica aqui.

 

 

 

23 de abril - dia mundial do livro

23.04.17

O director geral convida-te a observar o planisfério pendurado na parede. A coloração diferente indica: 

os países em que todos os livros são sistematicamente apreendidos; 

os países em que só podem circular os livros publicados ou aprovados pelo Estado;

os países em que existe uma censura boçal, pouco rigorosa e imprevisível; 

os países em que a censura é subtil, culta, atenta às implicações e às alusões, gerida por intelectuais meticulosos e astutos; 

os países em que as redes de difusão são duas: uma legal e outra clandestina; 

os países em que não há censura porque não há livros, mas existem muitos leitores potenciais; 

os países em que não há livros e ninguém lamenta a sua falta; 

os países, por fim, em que saem todos os dias livros para todos os gostos e para todas as ideias, no meio da indiferença geral (...)

 

Que dado permite distinguir melhor as nações em que a literatura goza de verdadeira consideração do que as verbas aplicadas no seu controlo e repressão? Onde é objecto de tais atenções, a literatura adquire uma autoridade extraordinária, inimaginável nos países onde a deixam vegetar como um passatempo inócuo e sem riscos.  

 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

Jean-Pierre Couarraze

 Colonne du savoir

 

 

há uma linha que separa

12.04.17

Há uma linha de demarcação: de um lado estão os que fazem os livros, do outro os que os lêem. Eu quero continuar a ser das que os lêem, por isso tenho o cuidado de me manter sempre para cá dessa linha. Se não, o prazer desinteressado de ler acaba, ou pelo menos transforma-se noutra coisa, que não é o que eu quero. É uma demarcação imprecisa, com tendência para se desvanecer: o mundo dos profissionalmente ligados aos livros está cada vez mais povoado e tende a identificar-se com o mundo dos leitores. É certo que os leitores também são cada vez mais numerosos, mas dir-se-ia que os que usam os livros para produzirem outros livros crescem mais do que os que gostam de ler os livros e nada mais. Sei que se transpuser essa fronteira, mesmo ocasionalmente, por acaso, corro o risco de me confundir com esta maré que avança 

 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 créditos imagem: http://indiqueumlivro.literatortura.com/wp-content/uploads/2014/12/great-place.jpg

 

 

 

(I) don't book back

03.04.17

     Resumindo, não pareces ser uma Leitora Que Relê (...) talvez cada livro para ti se identifique com a leitura que fizeste num determinado momento, de uma vez por todas. E tal como os guardas na memória, gostas de conservar os livros enquanto objectos, de mantê-los junto de ti. 

 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

 .

sagrado

03.04.17

Uma vez - contam os biógrafos do Profeta - ao ditar ao escrita Abdullah, Maomé deixou uma frase a meio. O escriba, instintivamente, sugeriu-lhe a conclusão. Distraído o Profeta aceitou como palavra divina o que dissera Abdullah. Este facto escandalizou o escriba, que abandonou o Profeta e perdeu a fé.

Estava errado. A organização da frase, em última análise, era da responsabilidade dele; era ele que devia ajustar contas com a coerência interna da língua escrita, com a gramática e a sintaxe, para captar a fluidez de um pensamento que se expande para fora de todas as línguas antes de se tornar palavra, e de uma palavra particularmente fluida como é de um Profeta. A colaboração do escriba era necessária a Alá, desde que decidira exprimir-se num texto escrito. Maomé sabia-o e dava ao escriba o privilégio de concluir as frases; mas Abdullah não tinha consciência dos poderes de que estava investido. Perdeu a fé em Alá porque lhe faltava a fé na escrita, e em si próprio como operador da escrita. 

 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

 

leitura natural, inocente, primitiva

01.04.17

 

... deitando para trás as páginas dilaceradas pelas análises intelectuais, sonhas recuperar uma condição de leitura natural, inocente, primitiva...

 

 

Italo Calvino – Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (1979)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

Amiguinhos lendo (1992)

Jane Tanner