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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

tráfego de colheres

13.03.19

Além disso, os enfermeiros tiram lucros enormes do tráfego das colheres. O Lager não fornece colher aos recém-chegados, apesar de não se poder comer de outra forma a sopa semilíquida. As colheres são fabricadas na Buna, à revelia e nos intervalos, pelos Häftlinge que trabalham como operários especializados em Kommandos de ferreiros e latoeiros: trata-se de utensílios grosseiros e maciços, extraídos de chapas trabalhadas a martelo, frequentemente com o cabo afiado, de forma a servir ao mesmo tempo como faca para cortar o pão. Os próprios fabricantes vendem-nas directamente aos recém-chegados: uma colher simples vale meia ração, uma colher-faca três quartos de ração de pão. Ora, é permitido por lei entrar no Ka-Be com a colher, mas não sair com ela. Aos doentes curados, no acto da saída e antes da entrega da roupa, a colher é requisitada pelos enfermeiros, que a põem à venda na Bolsa. Juntando as colheres dos doentes de saída às dos mortos e dos seleccionados, os enfermeiros perfazem por dia a quantia correspondente à venda de cerca de cinquenta colheres. Pelo contrário, os que tiverem alta são obrigados a voltar ao trabalho com a desvantagem inicial de meia ração de pão a gastar para a aquisição de uma nova colher (...) 

Em conclusão: o roubo na Buna, punido pela direcção civil, é autorizado e encorajado pelos SS; o roubo no campo, reprimido severamente pelos SS, é considerado entre os civis como uma normal operação de troca; o roubo entre Häftlingue geralmente é punido, mas a punição atinge com igual gravidade o ladrão e a vítima. Queríamos agora convidar o leitor a reflectir sobre o que podiam significar no Lager as nossas palavras «bem» e «mal», «justo» e «injusto»; cada um julgue, na base do quadro que traçámos e dos exemplos acima referidos, quanto do nosso comum mundo moral podia subsistir aquém do arame farpado. 

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

Black Square

Kazimir Malevich

 

 

voltar a ser

28.02.19

Depois de arranjar a janela partida e depois de o aquecedor começar a difundir calor, pareceu que em cada um a tensão afrouxara, e foi então que Towaroski (um franco-polaco de vinte e três anos, doente de tifo) propôs aos outros doentes que oferecessem cada um uma fatia de pão a nós os três que tivemos o trabalho, e a proposta foi aceite. 

Um dia antes, tal acontecimento não teria sido concebível. A lei do Lager dizia: «come o teu pão e, se puderes, o do teu vizinho», e não deixava lugar à gratidão. Isto significava claramente que o Lager estava morto.

Foi este o primeiro gesto humano que aconteceu entre nós. Julgo que se poderia fixar naquele momento o início do processo pelo qual, nós que não morremos, de Häftlinge voltámos lentamente a ser homens. 

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

Resurrection of the Messiah

Justin BUA

 

a última marcha

27.02.19

Todos os prisioneiros sãos (excluindo alguns bem aconselhados que, à última hora, se despiram e se esconderam nalguma cama de enfermaria) partiram na noite de 18 de janeiro de 1945. Deviam ser cerca de vinte mil, provenientes de vários campos. Desapareceram quase todos durante a marcha de evacuação: Alberto foi um deles. Talvez alguém escreva um dia a história destes homens. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

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THE DEATH MARCH

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ser homem

27.02.19

Foi o primeiro a perceber que esta vida é uma guerra; não concedeu a si próprio qualquer indulgência, não perdeu tempo a recriminar e a compadecer-se de si mesmo e dos outros, mas desde o primeiro dia foi à luta. Animam-no a inteligência e o instinto, raciocina correctamente, em muitos casos não raciocina, o que também está correcto (...) Luta pela vida, mas mesmo assim é amigo de todos. «Sabe» quem deve corromper, quem deve evitar, quem se pode apiedar, a quem deve resistir. 

Porém (é por esta virtude que ainda hoje a sua memória é para mim querida e viva), não se tornou cínico. Sempre reconheci, e ainda reconheço nele, a rara figura do homem forte e bondoso, contra o qual se quebram as armas da noite. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

a notícia

22.02.19

Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

todavia sabemos que

12.02.19

Hoje, todavia sabemos que, naquela escolha rápida e sumária, avaliara-se se cada um de nós podia ou não trabalhar utilmente para o Reich; sabemos que nos campos, respectivamente de Buna-Monowitz e Birkenau, só entraram, do nosso comboio, noventa e seis homens e vinte e nove mulheres e que de todos os outros, num total de quinhentos, nem um se encontrava vivo dois dias depois [...] 

Assim morreu Emília, que tinha três anos; porque aos alemães parecia evidente a necessidade histórica de matar os filhos dos Judeus. Emília, filha do engenheiro Aldo Levi de Milão, que era uma criança curiosa, ambiciosa, alegre e inteligente; a ela, durante a viagem no vagão cheio de gente, o pai e a mãe conseguiram dar banho numa tina de zinco, em água morna que o degenerado maquinista alemão aceitara pingar da locomotiva que nos arrastava a todos para a morte. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

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Souffrance ou espoir d'une délivrance

 

Représentation de la souffrance de ceux qui vécurent dans les camps d'extermination. Si les personnages sont bleus c'est uniquement pour montrer l'universalité dans la persécution. Que ces personnes soient juives, catholiques, bouddhistes, protestantes, musulmanes, ou qu'elles aient la peau blanche, basanée, noire, rouge, jaune, homo bi ou hétérosexuel, cela importe peu, elles ont soufferts elles furent exterminées. Il ne doit pas y avoir de catégorie et d'ordre dans la souffrance et la persécution. aucune n'est mieux que l'autre. 

 

in http://turgis.pagesperso-orange.fr/06c-peinturgis-huile-symbolique-05.html

 

 

condição humana

12.02.19

nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito. Opõe-se-lhe o nosso sempre insuficiente conhecimento do futuro; e a isto se chama, num caso, esperança; no outro, incerteza do amanhã. Opõe-se-lhe a certeza da morte, que impõe um limite a qualquer alegria, mas também a qualquer dor. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

 

sem

30.01.19

 

Aqui esperavam-nos o comboio e a escolta para a viagem. Aqui recebemos as primeiras pancadas: e o facto foi tão novo e insensato que não sentimos dor, nem no corpo nem na alma. Só um profundo espanto: como se pode bater num homem sem raiva?

 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

Scène du massacre des innocent - 1824

Léon Cogniet

 

 

ténue barreira

11.01.19

A faculdade humana de cavar um nicho para si, de segregar uma carapaça, de levantar à sua volta uma ténue barreira de defesa, mesmo em circunstâncias aparentemente desesperadas, é espantosa e mereceria um estudo aprofundado. 

 

Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)