Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

disfunções

17.02.22

Os fatores relativos ao nosso funcionamento cognitivo, embora muito importantes, não são, porém, suficientes para explicar a dinâmica dos estereótipos [...] é importante sublinhar que os estereótipos podem mudar de acordo com mudanças no padrão de relações entre grupos. Quando os grupos entram em competição por recursos, os estereótipos mútuos tornam-se sobretudo negativos; porém, logo que os mesmos grupos são envolvidos em relações de cooperação para a sobrevivência mútua, esses estereótipos tornam-se positivos [....]

Da mesma forma, sempre que na União Europeia se verificam crises associadas à gestão de recursos comuns, como a crise do Euro em 2010 ou a crise de 2020 associada à COVID-19, ressurge a categorização dos países europeus em países do Norte vs. países do Sul, envolvendo cada categoria um número variável de nações, mas sempre acompanhada dos mesmos estereótipos ou imagens, mobilizados para justificar medidas ou a ausência delas: o Norte representado como «formiga» e o Sul como «cigarra» e, mais recentemente, «os frugais» contra os «gastadores».

Estas dinâmicas e mesmo mudanças nos estereótipos e na sua valência mostram como estes refletem a natureza mais competitiva ou mais colaborativa das relações entre os grupos e as motivações associadas a essas relações. A instabilidade destas imagens estereotípicas contradiz a perceção que temos de que os traços estereotípicos de um grupo refletem o que esse grupo é, e não o que pensamos sobre ele [...]

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

The Future of Europe

Spiros Derveniotis

 

barrocas

01.02.22

Temos de ser cépticos, mas isso não quer dizer que não deitemos as precauções para trás das costas e não aceitemos tudo o que nos entra pela porta. Há vezes em que devemos chorar; outras, servimo-nos de um machado para cortar de forma impiedosa todo o tipo de cascas e outras excrecências. 

 

Virginia Woolf – As Ondas (1931)

Colecção Mil Folhas / Bibliotex SL / M.E.D.I.A.S.A.T. e Promoway Portugal Ltda (2002)

 

 

-minded

18.01.22

"They don't need to be invited, they can just come." [...] "Olive, sometimes people like to be invited. I, for example, would have loved to be invited to your house on many occasions, but you've not invited me except for that one time when I asked you to take me over. And so I have felt rebuffed. Do you see that?"

Olive exhaled loudly. "You could have called."

"Olive, I just told you I did call. I called you a couple of times, and because you turned off your friggin' answering machine, you didn't know I called." [...] "Only pointing out here that people can't read your mind.

 

Elizabeth Strout – Olive, Again (2019)
Penguin Random House UK (2019)

 

 

amor próprio

17.12.21

Durante e após a II Guerra Mundial, muitos cientistas sociais se perguntaram como fora possível que nações inteiras seguissem líderes não democráticos, com programas de ação de extermínio de outros povos. Foi para responder a esta pergunta que um grupo de investigadores da Universidade de Berkeley concebeu um plano de investigação que começara a ser delineado por Theodor Adorno ainda na Alemanha. A hipótese de partida era a de que os motivos económicos não teriam desempenhado na ascensão do nazismo o papel determinante que na altura (e ainda hoje) se lhes atribui. Para a equipa de Adorno, seria importante explorar o papel do pensamento preconceituoso e autoritário [...] os mesmos autores mostraram que o etnocentrismo estava associado ao conservadorismo e ao autoritarismo, e este a atitudes sociais como a punição forte das pessoas consideradas desviantes, a desconfiança em relação à ciência e a visão do mundo como um lugar perigoso.

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

 

no choco

02.11.21

Nas sociedades democráticas, o percurso que vai do racismo e do preconceito à discriminação não é um caminho direto. Ele passa pelo crivo da legitimação e esta necessita de validação social, invocando argumentos percebidos como justos e dissociando-se de motivações racistas. Então, justificações razoáveis podem tornar toleráveis crenças racistas e comportamentos discriminatórios. Estas justificações legitimadoras são frequentes e muito diversificadas, mas parecem alicerçar-se num fator aglutinador: a preservação da identidade positiva da maioria [...] a necessidade de legitimar a discriminação dissociando-a da sua base racista e associando-a a um comportamento justo, defensivo ou contraofensivo, face ao sentimento de ameaça à identidade da maioria dominante.

Esta necessidade de legitimação acontece, porém, apenas nas sociedades democráticas. A questão que se pode colocar é a de saber se, num clima de enfraquecimento dos valores da democracia, o antirracismo não será também questionado.

Estaremos a entrar num cenário dos anos 20 como o que Bergman retratou no seu filme marcante O Ovo da Serpente?

Nessa altura, era a ascensão do nazismo que se via crescer, como se pode ver o crescimento da serpente no interior do seu ovo. Tal como o filme retrata, contudo, toda a gente olhava, mas ninguém o via realmente. Hoje são muitos os sinais dos limites à democracia, do autoritarismo, da relativização das desigualdades sociais e da discriminação racial que aparentemente se tornaram invisíveis. Será necessário desenvolver investigação e debate que os torne salientes, pois reconhecê-los é um passo necessário para os eliminar.

 

Jorge Vala – Racismo, Hoje, Portugal em Contexto Europeu (2021)

Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Vala (2021)

 

The voice of energy


This is the voice of energy
I am a giant electrical generator
I supply you with light and power
And I enable you to receive speech
Music and image through the ether
I am your servant and lord at the same time
Therefore guard me well
Me, the genius of energy

 

detrações

15.07.21

Há quem garanta que esta "é uma história mal contada". O já falecido historiador José Hermano Saraiva, conhecido admirador do ditador, disse e escreveu: «Aristides de Sousa Mendes é uma invenção de uma certa esquerda para denegrir a memória de Salazar.» E mais: «Quem salvou os refugiados em 1940 foi o comboio [...] para lá, levavam volfrâmio, e para cá traziam refugiados.» É a versão do "volfrâmio humanitário", uma perigosa tentativa de revisionismo. José Hermano Saraiva nem pensou nas questões técnicas: comboios para minério (abertos) não são a mesma coisa que comboios para passageiros. É verdade que os nazis também usavam comboios de carga (fechados) para levar pessoas para os campos de concentração... E há outro detalhe: a bitola dos comboios ibéricos não é a mesma dos comboios para lá da fronteira de Hendaye.

Para outros, a desobediência à Circular 14 é um episódio que em vez de nos encher de orgulho nos enche de embaraço, e é melhor nem falar no assunto. Seria muito melhor se fosse mentira. E há, na realidade, tentativas de contar os factos de outra maneira, algumas que demonstram até uma abundante criatividade. 

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

o-que-hão-de

08.07.21

No MNE não se tinha perdido tempo. Salazar, na qualidade de todo-poderoso ministro dessa pasta, tinha enviado, a 2 de julho, um telegrama (o 2139) para a embaixada de Portugal em Londres (ao embaixador Armindo Monteiro) fazendo uma atualização dos acontecimentos em Portugal: «Refugiados carácter político e intelectuais como aqueles a que se refere telegrama V.Exa. são dos menos desejáveis pelas atividades que hão de querer desenvolver

 

António Moncada S. Mendes – Aristides de Sousa Mendes, Memórias de Um Neto
Edições Saída de Emergência e António Moncada S. Mendes  (2017)

 

 

de dentro

07.06.21

Era realmente um grande artista, porque ninguém o fabricou, nasceu de dentro. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018) 

 

 

cinderelas arquivadas

09.05.21

Sílvia descreve como encontrou a mulher sentada num banco gasto e com um monte de telhas novas, que os serviços da autarquia lá tinham deixado, à espera de serem colocadas no alpendre cuja cobertura fora consumida pelas chamas. Os homens trataram de pôr as telhas no sítio, mas não conseguiram satisfazer o pedido da mulher para que lhe arranjassem uns chinelos novos, porque ela calçava num pé o 35 e no outro o 37 [...]

«Nasci nesta casa velha e por aqui estou, até que venham os anos que Deus queira dar», diz Angelina, em jeito de introdução. Ouve muito mal, mas exprime-se bem e não gosta que a interrompam ou lhe cortem o raciocínio. A casa, em geral, não foi afectada pelas chamas - apenas um anexo ao lado, que está impecavelmente reconstruído, mas vazio, e o telhado do alpendre, que os homens de Esposende arranjaram. A habitação, escura, fria, sem chão acolhedor, com fios de electricidade à mostra e sem qualquer protecção do telhado abaixo da telha nua, ficou na mesma. Tão velha e necessitada de obras como estava antes do incêndio. Angelina pouco de lá sai, porque é preciso vencer uma escadaria em pedra que a velha mulher já quase não consegue descer ou subir.

Aos quatro anos, Angelina teve meningite e, depois disso, ficou com problemas numa perna. Melhorou ligeiramente aos 25 anos, depois de uma cirurgia - altura em que, segundo contara a Sílvia, calçou sapatos pela primeira vez -, mas nunca recuperou totalmente, e a idade e os problemas de circulação pioraram tudo. Nunca casou, facto que encara com naturalidade, replicando: «Então, aleijadinha, ia lá casar?»

 

Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)

 

 

(agressão)

06.03.21

É a que nunca teve sorte e tinha um grande amor que merecia a felicidade. 

 

António Ramos Rosa in  MUSAS  - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)