- São rosas, senhor - grunhia a dona Maria da Conceição. - São rosas!
Dizia-o com os olhos tão abertos que conseguíamos ver o trapo em que a rainha transportava o pão abrir-se. O pão para os pobres. E de lá de dentro saltavam flores.
- Flores vermelhas - continuava. - Vermelhas como o sangue com que se fez a nação.
De maneira que era tudo muito bem explicado. Voltávamos para casa cheios de pensamentos acerca dessa rainha, que se metia em alhadas por causa dos pobres. Os pobres que o rei, o rei mauzão, não queria ajudar. E a história de Inês de Castro: «Poupai ao menos os meus filhos, eles não têm culpa, senhor», dizia a professora. Mas a melhor parte era quando D. Pedro dava caça aos assassinos da sua amante, que nos era descrita como sua esposa. Legítima esposa. «E arrancou-lhes o coração pelas costas!», dizia a professora. Sobre o facto, também, de os filhos de D. Inês e D. Pedro serem ilegítimos, nem uma palavra. Acerca do embaraço que isso colocava à coroa, muito menos. Sobre os problemas com Castela, muito menos ainda. Nada. Silêncio.
Os reis desfilavam à nossa frente, seguidos pelos seus séquitos, sempre prontos a partir para a guerra. Havia comandantes a rezar à Virgem Maria atrás de uma pedra antes de a batalha começar. Reis que iam voltar numa manhã de nevoeiro que acabaria por chegar. D. Afonso Henriques, que tinha mentido ao papa acerca da doação de uns quantos sacos de ouro ao ano e por isso estava no inferno.
Depois vinham as perguntas. Quem foi o terceiro rei da dinastia de Avis? Como se chamavam os pretendentes ao trono durante o interregno que perdurou de mil trezentos e oitenta e três a mil trezentos e oitenta e cinco? Por quantas embarcações era constituída a armada portuguesa que partiu nesse saudoso ano de mil quatrocentos e quinze à conquista de Ceuta?
A porta que se escancarava para os que se haviam portado de acordo com o que se sabia que estava correcto. Os antigos. De acordo com o que eles já diziam.
Era o medo de não estar certo que se via nos olhos dele.
Só que não era possível que se andasse há dois mil anos a ensinar uma doutrina errada. Esse era o argumento.
Este registo de pecados devia ser um registo de pensamentos. Não são pecados: são pensamentos. Pensamentos que uma pessoa deve ter para se perguntar acerca das coisas.
A palavra rei, por sua vez, queria dizer algo mais do que uma pessoa que estava sentada num trono a mandar. D.Afonso Henriques prometera uma certa quantidade de sacos com ouro ao papa, entregue todos os anos. Mas nunca lhos chegara a dar. Estava no inferno. E tinha metido a própria mãe numa prisão.
Ao usar as palavras dessa maneira, obtivera o seu próprio país.
Mas isto só queria dizer que ele fora mais esperto do que os outros. Tinha usado as palavras um bocadinho melhor. No que dizia respeito ao papa, bastara dizer-lhe que lhe dava os sacos com ouro. Eram só palavras. Não custava nada. E passar por cima da frase «respeitar pai e mãe» também não constituíra para ele um problema.
Um conjunto de palavras, afinal, que não se aplicavam sempre. Nem a tudo. Porque se as tivesse levado à letra, não se tinha feito Portugal.
O rapaz de calças de ganga era, afinal, uma pessoa séria. Tinha estudado muito, no seminário. O pai era um lavrador com posses, como o senhor Rodrigues, e ele só se tinha formado por devoção. Podia ter ido para médico, engenheiro ou professor. Com os conhecimentos do pai, podia estar muito bem na vida. Podia ter investido num negócio ou arranjado um tacho na câmara municipal. Se fosse uma pessoa menos decente, era o que teria feito. Tantos que queriam e não podiam!
Sem se esquecer de referir o pormenor da indumentária devida a uma pessoa que ocupava a posição dele, o meu pai dizia o mesmo (...)
As calças de ganga eram o defeito do qual ninguém, a não ser Deus, se conseguia eximir. Estávamos servidos para a vida. Que pedíssemos a Deus que o estimasse, todos os dias, nas nossas orações.
Mas o que mais me espantou foi o carrilhão de tias que ao longo das horas seguintes foram subindo as escadas a chorar. Durante o ano e meio em que o tio esteve em nossa casa, ninguém perguntava se era preciso alguma coisa, se ele estava melhor.
Quando tinha a minha idade, o tio Alexandre estava convencido de que os problemas de flatulência eram um exclusivo dos pobres.
«Só os pobres é que se peidam», pensava.
Por isso ficou surpreendido quando, numa vindima, ouviu o senhor Rodrigues aliviar-se à frente de toda a gente. Um ronco curto e seco, próprio de quem sabe mandar.
Contava a história do pobre que encontrou um maço de notas no chão.
Acontece que tinha acabado de passar um rico naquele caminho e não havia qualquer dúvida acerca da pessoa a quem as notas pertenciam. Depois de pensar no assunto, o homem pobre acabou por ir bater à porta do ricaço e, assim que recebeu o dinheiro, este pegou no maço e tirou uma nota.
- Compra uma corda para te enforcares - disse.
- Porquê? - perguntou o outro.
- A ti, esse dinheiro resolvia-te a vida. A mim não faz diferença.