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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

a paz

11.12.20

encontrámo-nos na editora, no primeiro andar, onde ficava a lindíssima sala de audições, (antes do incêndio do Chiado), com o piano, e o melhor que havia de material de bobinas. Comecei a ouvir e já não saí dali. Depois a porta abriu-se e ele saiu [...] E disse-me: anda cá, quero que ouças. E eu ouvi, ainda não era definitivo, mas já não era maquete. O que achas? E eu disse, acho que devias ter instrumentos tradicionais, porque está muito elétrico, muito rock. As tuas melodias pedem instrumentos de Portugal. A tua cena é muito de cá. Foi o nosso primeiro contacto e houve logo uma grande empatia. Ele era uma pessoa cheia de humor, sempre tão bem arranjado, cuidado, cheiroso. Usava pulseiras de picos, correntes de cães, adereços estranhos, a maior parte feita por ele, e era a paz em pessoa. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)

Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

é complicado

25.11.20

- Podes pedir desculpa a Lorde Colin, Win?

- Essa é a parte complicada. Um homem desculpa-se quando não errou, como gesto educado, e para manter as aparências. Quando errou, a questão torna-se mais complicada. 

Puro disparate masculino. 

- Foi isso que aprendeste em Oxford? 

 

Grace Burrowes – Coração Ardente (2017)

Quinta Essência (2019)

 

 

intelectual ordinarice vanguardista

02.11.20

Uma reflexão à distância dos anos, mas que mantém a sua acuidade. O artista plástico Leonel Moura, que descreve o meio cultural português como «extremamente conservador, tal como a sociedade portuguesa no seu todo», escalpeliza a ilusão que persiste até hoje, nesse circuito, de que é tudo muito avançado e são todos muito vanguardistas: «isso é uma rematada «mentira», pois o formalismo impera, quer nas relações entre as pessoas, quer na forma como se vestem e comportam. E no extremo oposto, cai-se no «ordinário»

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018)

 

 

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engolir para fora

24.08.20

Certa vez, o avô Jorge cortou a ponta do dedo com a tesoura da poda. Nesse caso, o grito foi curto e grave. Como se o som quisesse sair e ele o metesse para dentro. Lutava não apenas com o sangue que jorrava como de uma mangueira, mas com o próprio grito. E logo de seguida, com um lenço apertado no dedo, o avô conseguiu dominá-lo. Tinha sido uma questão de segundos. Um desleixo. Uma coisa a não repetir.

[...]

Aquele grito existiu, não era possível voltar atrás, mas foi remetido para a escuridão no mesmo momento em que foi produzido. A escuridão das coisas de que não é permitido falar. As coisas íntimas. As coisas que se querem só para nós. 

Os gritos da mãe eram outra coisa. Eram gritos virados para fora. Queriam dizer que existiam. Viajar para longe. Perdurar no tempo e na distância. Era como se fizessem questão de permanecer dentro dela e ela os quisesse expulsar. Como se, de boca aberta, procurasse projectar o som o mais longe que podia. 

E a isto, percebi depois, as pessoas chamavam desabafar.

- Deita tudo cá para fora - ouvi o resto do dia. 

Isso queria dizer que o avô tinha procurado abafar a sua dor, comê-la. Por outro lado, a mãe fazia todos os possíveis para desabafar a sua dor, vomitá-la. Isto era compreensível. À partida, só conseguíamos manter uma dor dentro de nós se ela lá coubesse. E tendo em conta o que ouvi durante esses dias, era natural que a dor da mãe fosse muito maior do que a do avô.

Uma dor maior. Sem comparação possível. 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

 

 

aprender com o trigo (não se desculpar com o joio)

05.06.20

O rapaz de calças de ganga era, afinal, uma pessoa séria. Tinha estudado muito, no seminário. O pai era um lavrador com posses, como o senhor Rodrigues, e ele só se tinha formado por devoção. Podia ter ido para médico, engenheiro ou professor. Com os conhecimentos do pai, podia estar muito bem na vida. Podia ter investido num negócio ou arranjado um tacho na câmara municipal. Se fosse uma pessoa menos decente, era o que teria feito. Tantos que queriam e não podiam! 

Sem se esquecer de referir o pormenor da indumentária devida a uma pessoa que ocupava a posição dele, o meu pai dizia o mesmo (...)

As calças de ganga eram o defeito do qual ninguém, a não ser Deus, se conseguia eximir. Estávamos servidos para a vida. Que pedíssemos a Deus que o estimasse, todos os dias, nas nossas orações. 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

honra deliciosa

11.07.19

Vá Com Deus
Vanessa da Mata
(Sereia de Água Doce)

 

Vejo o povo dizer
Que perdeu um amor
Que quando estava lá
Só rimava com dor
Isso não é perda
Isso é livramento

Nesse mundo tonto
Que vive rodando
Vejo tanta gente desesperada
Criando histórias
Criando pessoas
Criando paixões
Medo da solidão

Qual é o problema
De estar na sua própria companhia?

Vi um casal com sangue
Ligação de ódio
Eu sei que os dois
Já não viviam
Andavam nas ruas
Meio mortos vivos
Até que entenderam seu desamor

Qual é o problema
De estar na honra
De sua própria companhia?

Fazer o que der na telha
Autossuficiência
Que delícia
Qual é o problema?


(...)


Vá com Deus...

 

 

a genialidade

17.04.18

- Gosto da maneira como escreves - disse o H.R. - Consegues dizer muito sem te tornares complicado.

- A genialidade pode ser a capacidade de dizer uma coisa coisa profunda de uma forma simples.

 

 

Charles Bukowski in Como Ser Publicado - Música para Água Ardente (1983)

Antígona (2015)

 

 

 

 Van Gogh versus Le Génie, 2015

Freddo Sacaro

 

 

 

borregos que escrevem

17.04.18

- Todos os escritores são uns borregos. É por isso que escrevem as coisas. 

- O que é que queres dizer «é por isso que escrevem as coisas»?

- Quero dizer que escrevem as coisas porque não as compreendem. 

 

 

Charles Bukowski in Aranha - Música para Água Ardente (1983)

Antígona (2015)

 

 

 

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