o único meio de sacudir tragédias e enfrentar desgraças é encará-las de frente e de coração ao alto. E, virando-se para o defunto no retrato, arranca a confirmação: Sabes bem, ó Sarmento, que sempre fui mulher de honra e de coragem! Se Deus te tragou nas ondas do mar, foi porque achou ser eu capaz de governar-me sozinha!
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
Mariana vai suportando cólicas no estômago, presume que por causa do nervoso, da ansiedade, zangada consigo mesma por ter cedido àquelas crendices que insultam a ciência e exploram as superstições dos néscios. Por que viera, então? Pelas mesmas razões que ali levam os outros, pelo desespero. A irritação que sente é por causa de ter esperança e de não a ter, de não ser capaz de manter a linha da razão, de vir à bruxa depois de se rojar aos pés da Virgem na igreja do Convento, de crer em tudo e em nada, segundo os dias e as horas da sua aflição.
Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
She makes love just like a woman, yes, she does And she aches just like a woman But she breaks just like a little girl.
Foi o primeiro a perceber que esta vida é uma guerra; não concedeu a si próprio qualquer indulgência, não perdeu tempo a recriminar e a compadecer-se de si mesmo e dos outros, mas desde o primeiro dia foi à luta. Animam-no a inteligência e o instinto, raciocina correctamente, em muitos casos não raciocina, o que também está correcto (...) Luta pela vida, mas mesmo assim é amigo de todos. «Sabe» quem deve corromper, quem deve evitar, quem se pode apiedar, a quem deve resistir.
Porém (é por esta virtude que ainda hoje a sua memória é para mim querida e viva), não se tornou cínico. Sempre reconheci, e ainda reconheço nele, a rara figura do homem forte e bondoso, contra o qual se quebram as armas da noite.
Primo Levi – Se Isto É Um Homem (1947) Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)
Sou homem: duro pouco e é enorme a noite. Mas olho para cima: as estrelas escrevem. Sem entender compreendo: Também sou escritura e neste mesmo instante alguém me soletra.
Numa época em que a intolerância dos mais velhos em relação aos jovens e dos jovens em relação aos mais velhos chegou ao cúmulo, em que os mais velhos não fazem outra coisa senão acumular argumentos para dizerem finalmente aos jovens aquilo que eles merecem, e os jovens não esperam mais do que estas ocasiões para demonstrarem que os mais velhos não percebem nada, o senhor Palomar (...) percebe que ninguém quer sair dos binários do seu próprio discurso para responder a perguntas que, sendo provenientes de um outro discurso, obrigariam a repensar as mesmas coisas com outras palavras, e até mesmo a encontrar-se em territórios desconhecidos, longe dos percursos seguros.