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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

aprender com o trigo (não se desculpar com o joio)

05.06.20

O rapaz de calças de ganga era, afinal, uma pessoa séria. Tinha estudado muito, no seminário. O pai era um lavrador com posses, como o senhor Rodrigues, e ele só se tinha formado por devoção. Podia ter ido para médico, engenheiro ou professor. Com os conhecimentos do pai, podia estar muito bem na vida. Podia ter investido num negócio ou arranjado um tacho na câmara municipal. Se fosse uma pessoa menos decente, era o que teria feito. Tantos que queriam e não podiam! 

Sem se esquecer de referir o pormenor da indumentária devida a uma pessoa que ocupava a posição dele, o meu pai dizia o mesmo (...)

As calças de ganga eram o defeito do qual ninguém, a não ser Deus, se conseguia eximir. Estávamos servidos para a vida. Que pedíssemos a Deus que o estimasse, todos os dias, nas nossas orações. 

 

Hugo Mezena – Gente Séria (2017)

Planeta Manuscrito (2018)

 

atitude

13.11.19

se não gostas de uma pessoa, afasta-te dela e deixa-a ir à sua vida.

 

Wray Delaney - Memórias de Uma Cortesã  (2016)

Quinta Essência, Oficina do Livro (2017)

 

 

 

não saber ganhar

09.10.19

Porque não soube merecer a glória, a mais suave

de me deitar a teu lado

e que do sangue a palavra

abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz

porque te perdi 

não sei quem sou 

 

 

António Ramos Rosa - Obra Poética I 

Assírio & Alvim (2018)

 

 

 

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ecos

02.08.19

Ao contrário de todo mundo, que fica se ressentindo 'porque ela me deixou, não sabe o que perdeu', eu não tenho medo de dizer: eu é que fui covarde e babaca.

 

Cazuza

 

 

Y ahora intenta decir que me amas
Sin miedo a que parezca mentira otra vez
Y no lo ves
Digo yo que algo tendremos que hacer
Borra de golpe
Su nombre en mi nombre
Y así lo olvidaré
Y mira bien
Mientras yo te reproche de más
Y tu te escondas con la duda otra vez
No quiero mas pulsos
Hay tanto que perder
Hazme sentir que lo bueno está por llegar
Que esto también pasará
Hazme sentir que compartimos un mismo latir

 

pedro(a)s

22.07.19

Conheci a maturidade infantil

das crianças, mas também não é isso 

(...)

fartei-me de tentativas.

 

Desejo antes a ferida sólida

que não sara, o enigma, essa coisa

que se transporta inteira pelo Universo

como o irreprimível grito

do sangue no vento avisando

o futuro de que não ficámos ilesos

à espessa rede do Amor 

(...)

Aperta-me esse mitigado anel tão alto

(...)

porque a angústia, doce angor, e a esperança

informam o meu sangue

do regresso da tua ausência.

 

Barbeio a infâmia do nosso desencontro,

o homem pode punir-se numa higiene

precária, pode pintar-se e eu

cumpro imenso os rituais

do disfarce.

 

Fumo a tirania do meu medo, para mim

é sede de ser tarde

a vinda do teu húmido oásis

sotto voce e eu,

eu reduzido a nada.

 

A morte avança, ama-me sob a luz

da tua voz

cobrindo a terra elementar onde prometidos

potros de crinas soltas e alma leve

se opõem ao vazio. 

 

Paulo da Costa Domingos in Cabeças

 

 

Paulo da Costa Domingos – Carmina (1971-1994)
Antígona (1995)

 

 

 

 

tomara

09.07.19

Tomara que a tristeza te convença, que a saudade não compensa e que a ausência não dá paz.

 

Vinicius de Moraes

19 de outubro de 1913 — 9 de julho de 1980

 

Onde Anda Você - Vinicius de Moraes & Toquinho

( Vinicius de Moraes / Hermano Silva )

E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam os seus olhos
Que a gente não vê
Onde anda esse corpo
Que me deixou morto
De tanto prazer

E por falar em beleza
Onde anda a canção
Que se ouvia na noite
Dos bares de então
Onde a gente ficava
Onde a gente se amava
Em total solidão

Hoje eu saio na noite vazia
Numa boemia sem razão de ser
Na rotina dos bares
Que apesar dos pesares
Me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você

 

 

like a woman, like a little girl

05.06.19

Mariana vai suportando cólicas no estômago, presume que por causa do nervoso, da ansiedade, zangada consigo mesma por ter cedido àquelas crendices que insultam a ciência e exploram as superstições dos néscios. Por que viera, então? Pelas mesmas razões que ali levam os outros, pelo desespero. A irritação que sente é por causa de ter esperança e de não a ter, de não ser capaz de manter a linha da razão, de vir à bruxa depois de se rojar aos pés da Virgem na igreja do Convento, de crer em tudo e em nada, segundo os dias e as horas da sua aflição. 

 

 

Álvaro Guerra – Razões de Coração (1991)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

She makes love just like a woman, yes, she does
And she aches just like a woman
But she breaks just like a little girl.

 

«Just Like a Woman»
Bob Dylan

 

tempo da cura

08.04.19

e eu de olhos fechados e nuca apoiada na parede a rezar uma Avé Maria que tinha obrigação de pôr as coisas em ordem e não punha 

 

 

António Lobo Antunes – A Última Porta Antes da Noite (2018)

Publicações Dom Quixote (2018)