supercouraçados
" - E s'a guerra continuar?
- Então emitimos votos onde, sem deixar de dar razão ao mais fraco, não negamos a razão do mais forte. E pedimos aos dois países em guerra que declarem solenemente que não fazem guerra um ao outro, mas que procedam a operações de ordem para regulação do conflito. É mais pacífico. Em geral, as operações militares sempre acabam por acabar. Admitimos então que a parte mais forte proceda a uma determinada tomada de território que lhe agrade, desde que não se pronuncie a palavra anexação. No referente à Etiópia fomos terríveis de início e não receámos protestar contra a atitude da Itália. Mas depois de termos desse modo provado o nosso apego ao ideal de justiça, tivemos mesmo que encarar a realidade de frente. É que, digam o que disserem os foliculários com falta de assunto, nós não somos utopistas. Por isso nos contentámos com dar aos Estados membros a liberdade de reconhecer ou não esta conquista. Bela táctica, não acham? Com efeito, as conveniências são respeitadas. Primo, a Sociedade das Nações permanece fiel ao seu ideal, visto que não reconhece, ao menos por agora, a conquista da Etiópia. Secundo, os Estados membros não infringem os seus deveres para com a Sociedade das Nações, uma vez que esta autoriza a reconhecer a conquista da Etiópia, se assim quiserem. Temos, como vêem, uma grande preocupação com a liberdade de pensamento e com a soberania dos Estados membros da Sociedade das Nações ainda não vencidos. Cada um dos Estados que faça o que quiser. Nos daí lavamos as nossas mãos. No fim de contas, o nosso papel é emitir votos prudentes, é votar resoluções hábeis que não desgostem ninguém. A nossa tarefa resume-se a isto: ser anódinos! Cumpriremos essa tarefa com um vigor cada vez maior. (Confidencial:) De resto, aquele négus é bastante antipático. Parece que nao está nada doente, que tudo aquilo é uma comédia. E, além disso, tenho ouvido dizer que vive com dificuldades. É claro que tudo aquilo é muito triste. Mas que se há-de fazer? O que a Etiópia tinha a fazer era servir-se de gases asfixiantes, e a verdade é que não temos culpa de ela ter um exército deplorável, não receio dizê-lo, deplorável. (Deu uma palmada na mesa.) Eis, num breve resumo, senhor ministro, a actividade da Sociedade das Nações. Mas não é tudo. Tenho dois grandes projectos que de certo modo são a carne da minha carne, filhos do meu pensamento e do meu coração, que concebi no silêncio e na meditação. Eis o primeiro projecto, que lhes conto confidencialmente. Se Sir John Cheyne estiver de acordo, pediremos aos grandes países que chamem Humanidade, Concórdia, Paz Internacional e assim por diante a todos os supercouraçados actualmente em construção. O meu segundo projecto consiste em suprimir os soldados e os canhões nas lojas de brinquedos. Desarmemos as crianças! Do ponto de vista moral, as crianças são mais importantes que os pais. O futuro! "
Albert Cohen – Trincapregos (1938)
Tradução de Pedro Tamen
Contexto Editora, Lda., para Círculo de Leitores (outubro,1999)
TRINCAPREGOS
também chamado Dentolas e Olho de Satanás
e Lord High Life e Sultão dos Tossegosos
e Crânio-em-Sela e Pés Pretos
e Chapéu Alto e Bei dos Mentirosos
e Palavra de Honra e Quase Advogado
e Complicador de Processos e Médico de Clisteres
e Alma do Juro e Poço de Astúcia
e Devorador de Patrimónios e Barba de Forquilha
e Pai da Imundície e Capitão dos Ventos