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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

vizinhança (ou as verdadeiras selvas)

09.06.21

No adro deram-lhe água; a vizinha cujo carro, segundo Angelina, «rodou toda a noite» também lhe levou pão e água, numa das vezes que ali regressou. De manhã, deixou-a em casa, fez-lhe o café com leite que a mulher não tomara na noite anterior, mas a velha mulher não se sente grata. Semanas depois deu pela falta de uma série de bens. Convenceu-se de que foi a vizinha que, naquela noite, lhe ficara com a chave de casa a responsável pelo roubo. Chegou a fazer queixa na GNR, mas diz que o processo não avançou. Hoje chora mais pelas coisas perdidas do que pelo receio do fogo. 

 

Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)

 

 

lutas (citadinas)

26.04.21

À época, o problema habitacional na Holanda assumira proporções de crise, com a incapacidade de resposta por parte da construção civil para resolver o alojamento dos retornados holandeses do Suriname - independente a partir de 1975 - e dos trabalhadores estrangeiros que, ao fim de alguns anos no país obtiveram autorização para mandar vir os seus familiares. Assim, a luta dos krakers teve, desde o início, a simpatia geral dos holandeses, muito embora nem sempre os seus métodos tivessem sido unanimemente apoiados...

Quando foram anunciados planos para demolir a maior parte das casas do bairro de Nieuwmarkt, a fim de se expandir a linha de metropolitano, explodiu uma contestação violenta por parte dos krakers secundados por residentes locais. Associados a outros movimentos, como os provos, os seus porta-vozes ameaçaram lançar LSD nas condutas de abastecimento público de água. E dado que estavam a desenrolar-se os preparativos para a boda da princesa herdeira Beatriz com o príncipe Claus von Amsberg, antigo diplomata alemão, ameaçaram também vir a boicotar os festejos do casamento, soltando ratinhos nas ruas à passagem do cortejo nupcial. Os jovens contestatários do mundo inteiro riram a bandeiras despregadas a imaginar cavalos à desfilada a atirar os ilustres ocupantes das carruagens, príncipes, princesas, presidentes da república, para os canais, perante uma população involuntariamente alucinada por via da água pública. Por fim, a cidade acabou por contemporizar com os movimentos radicais. Não houve ratinhos no casamento de Beatriz e Claus, nem alucinogénios na água canalizada. Os velhos edifícios salvaram-se, e o traçado do metropolitano foi alterado, muito embora a linha Stopera (da Câmara à Opera) tivesse sido construída 1

 

1 Os krakers vieram a conseguir apoio no próprio Parlamento, e por volta de 1980 foi implantada uma nova política de arrendamento. Amesterdão não tem casas desocupadas nem degradadas. 

 

Manuela Gonzaga – António Variações, Entre Braga e Nova Iorque (2018)
Manuela Gonzaga e Bertrand Editora (2018) 

 

 

fim flash

15.03.21

Ele já com a marca da queimadura, a gritar [...] O Gonçalo vem na minha direcção e eu pergunto-lhe: " Ó Gonçalo, o que é que vos aconteceu?" Ele olha para mim e aquele olhar disse-me tudo. Não me deu uma palavra, mas o olhar disse-me tudo. Não me deu uma palavra, mas o olhar disse-me tudo. Corro para a ambulância e é onde o vejo a ele, todo encharcadinho de água. A cara dele era uma bolha só. Uma coisa horrível. Estava deitado sobre o lado esquerdo, com as mãos traçadas e a pele toda pendurada. Foi daqueles momentos que nos passa a vida em flash [...]

Ajoelhada junto ao marido, ele pede-lhe que olhe por um irmão, deficiente, que vive com a família. «Ele disse-me, muito baixinho: "Olha pelo Chico, que eu não volto mais a casa."

 

Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)

 

 

lobby floor

11.02.21

Quando fui para os bombeiros, combatíamos fogos com batedores. Não havia grandes carros de água, só tínhamos um ou dois e o resto era tudo batedor. E não fazíamos rescaldo: batíamos, varríamos para dentro do queimado e ficava assim. O mato era baixinho. As áreas eram todas cultivadas. Agora, não. Agora é manta morta, não andamos com os pés no chão, mas em cima de manta morta. Tudo no chão é combustível. 

 

Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)

 

 

o problema com a bebida

15.01.21

É este o problema com a bebida, pensei, enquanto me servia dum copo. Se acontece algo de mau, bebe-se para esquecer; se acontece algo de bom, bebe-se para celebrar, e se nada acontece, bebe-se para que aconteça qualquer coisa. 

 

Charles Bukowski – Mulheres (1978)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2003)

 

 

a pão e vacinas (mas sem água...)

14.01.21

Quando os voluntários de Esposende se puseram a caminho, no domingo, 2 de julho, já sabiam que teriam à espera deles cinco jipes, que seriam os guias pela terra queimada do Centro. Tinham sido feitos mapas, e as carrinhas e carros particulares foram divididos em cinco grupos, cada um deles com um pouco de tudo o que levavam, para que nenhum dos bens faltasse em cada localidade por onde passavam. O grupo de Coimbra deu-lhes algumas instruções. Que se esforçassem para não chorar convulsivamente à frente das pessoas que iam encontrar, para tentarem controlar as emoções, porque aquelas populações estavam muito fragilizadas. E que tivessem cuidado, porque havia algumas falsas vítimas a tentar aproveitar-se da situação [...] Mas não tinham noção, diz Sílvia. Por muito que julgassem saber, não tinham noção do que os esperava. 

Primeiro, foi a paisagem. Agora, já não havia filtros do ecrã do televisor, a cor e o cheiro do queimado estavam em todo o lado [..] Depois, as pessoas. «Houve uma grande revolta, porque percebemos que, se confiássemos nas instituições, que nos diziam que já não era preciso nada, tínhamos ido de mãos a abanar. Teríamos ido dar um abraço às pessoas, um bocadinho de colo, mas não levaríamos nada. E a realidade que encontrámos foi completamente diferente. As pessoas pediam-nos água, água, que não tinham de beber. Na primeira casa pediram-nos água e eu pensei: é só aqui. Mas o pedido repetiu-se, e massacrei-me aquele dia todo, porque não me ocorreu, em pleno século XXI, que, num país desenvolvido da Europa comunitária, houvesse velhinhos sem água. 

 

Patrícia Carvalho – Ainda aqui estou (2018)

Fundação Francisco Manuel dos Santos e Patrícia Carvalho (2018)

 

 

 

até um dia B. (03.11.1982 - 27.11.2017)

03.11.20

as mãos salvas conhecem-se, sem gestos.

[...]

os sonhos que tive desfizeram-se,

percorro agora a terra onde eles nascem

[...]

Ouso ser simples como o pão e a água. 

 

António Ramos Rosa in TERRA IMPONDERÁVEL - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

deixar

06.03.20

Não cantes vitorioso nem a galope: deixa as palavras virem ao nível do seu vagaroso peso, do seu chão de água. 

 

António Ramos Rosa in ONDE AINDA É POSSÍVEL - Obra Poética I

Assírio & Alvim (2018)

 

 

terno abrasivo

01.10.19

Bastou uma pequena água

para que o Universo inteiro vestisse

a tua cinza perturbada delirante pelos rituais

da saliva e da pele. E o nosso sangue queimava

terno abrasivo. 

 

Paulo da Costa Domingos in CAMPO DE TÍLIAS

 

 

Paulo da Costa Domingos – Carmina (1971-1994)
Antígona (1995)

 

 

 

livre de influências

27.09.19

...as ficções sociais não são gente, em quem se possa dar tiros... Você compreende bem? Não era como o soldado de um exército que mata doze soldados de um exército contrário; era como um soldado que mata doze civis da nação do outro exército. É matar estupidamente, porque não se elimina combatente nenhum... Eu não podia portanto pensar em destruir, nem no todo nem em nenhuma parte, as ficções sociais. Tinha então que subjugá-las, que vencê-las subjugando-as, reduzindo-as à inactividade (...) Procurei ver qual era a primeira, a mais importante, das ficções sociais. Seria essa que me cumpria, mais que a nenhuma outra, tentar subjugar, tentar reduzir à inactividade. A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro. Como subjugar o dinheiro, ou, em palavras mais precisas, a força, ou a tirania do dinheiro? Tornando-me livre da sua influência, reduzindo-o à inactividade pelo que me dizia respeito a mim (...)  Como podia eu tornar-me superior à força do dinheiro? O processo mais simples era afastar-me da esfera da sua influência, isto é, da civilização; ir para um campo comer raízes e beber água das nascentes; andar nu e viver como um animal. Mas isto, mesmo que não houvesse dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção social; não era mesmo combater: era fugir. Realmente, quem se esquiva a travar um combate não é derrotado nele. Mas moralmente é derrotado, porque não se bateu. O processo tinha que ser outro - um processo de combate e não de fuga. Como subjugar o dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando o seu encontro? O processo era só um - adquiri-lo, adquiri-lo em quantidade bastante para lhe não sentir a influência... 

 

 

Fernando Pessoa - O Banqueiro Anarquista (1922)
Antígona (2018)