«Houve uma senhora que tinha um marido que trabalhava fora, no Iraque ou na Arábia Saudita, ou lá o que era, que nos apareceu no CATUS com uma cólica renal.» Inscrição feita, vez chegada, o médico interpela a paciente sem a observar. «Como ela disse que era costume ter cólicas renais, ele encaminhou-a para a sala de tratamento, para levar uma injecção.» Na sala, estava de serviço um enfermeiro que pertencia ao quadro de um hospital e que fazia horas extra naquele serviço do Algueirão. «Era um indivíduo muito batido, com experiência de hospitais, onde aparece de tudo. Solteiro, mas muito sabido», assegura Lurdes. «Quando ele manda a senhora despir as calças, olha para a barriga dela e manda chamar o médico.» O que alegadamente seria uma cólica renal era, afinal, uma gravidez em fase final. Literalmente. «Acontece que as dores já eram do parto e ela começa a dar à luz. E a criança acabou por nascer lá.» Entretanto o marido tinha acompanhado a paciente e encontrava-se na sala de espera. «Ele tinha vindo de férias há dois ou três dias, só que tinha estado fora um ano e tal. E não deu por nada.» João e Lurdes acreditam que ela contava ter tido a criança mais cedo, antes do regresso do marido, podendo assim desfazer-se dela, «de certeza absoluta». O médico então vem ter com o cônjuge e informa-o de que a mulher está prestes a parir, ante o ar incrédulo do interlocutor. «Não pode ser!» «Ai pode, pode.» Quando finalmente se conclui o parto e o emigrante enganado entra na sala de recobro improvisada, a mulher reage da seguine forma: «Vês, puseram-me aqui esta criança, o filho não é meu, puseram-mo aqui ao lado. Eu estou com uma cólica renal e estes sacanas meteram-me aqui uma criança!» [...] ainda assim, perante todas as evidências, a mulher passou a viagem para o hospital a negar convictamente a maternidade. Não sabemos se até hoje. «Depois é que os bombeiros nos contaram, ela ia com o marido na ambulância, porque tiveram de ser encaminhados para uma maternidade, e dizia sempre que a criança não era dela.»
Pedro Vieira –Em que posso ser útil?(2021)
Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pedro Vieira (2021)
De manhã são dezenas e durante a madrugada os autocarros transportam quase exclusivamente estas trabalhadoras[...] As noites nos autocarros da Carris, em Lisboa, e as conversas com quem acorda às três ou quatro da manhã para trabalhar deixaram a certeza de que este trabalho não é conhecido, nem reconhecido [...] as trabalhadoras de limpeza industrial são as que estão mais expostas. Limpam centros comerciais, escritórios, hospitais, aeroportos, bancos, lojas, estão em todos os edifícios, porque é raro o edifício que não tem uma empregada de limpeza. Ou um empregado. Ainda assim, apesar de se cruzarem com dezenas de pessoas todos os dias, continuam a passar despercebidas.[...]
A dirigente sindical Vivalda Silva admite a realidade e admite também, depois de umas contas de cabeça, que, no Oeiras Parque, por exemplo, os números são fáceis de apurar: «As trabalhadoras são maioritariamente africanas, uns 90%. Aliás, nem me lembro se está lá alguma portuguesa.»
O Centro Comercial Colombo, na freguesia de Benfica, segue a mesma tendência [...] «em 30 e tal pessoas em cada turno[...] 95% são africanas». [...] Basta fazer uma viagem de autocarro durante a madrugada para perceber que as mulheres negras são a maioria [...] Sanie dos Santos Reis [...] fez um exercício que permitiu transformar a observação em números [...] Em três meses, viu 2369 mulheres naquele autocarro às cinco e meia da manhã. Desse total, 2132 eram negras ou de nacionalidade estrangeira. Além do autocarro [...] fez 64 viagens no comboio que liga Sintra a Lisboa. A conclusão é a mesma: das 1820 mulheres, 1660 eram negras ou de nacionalidade estrangeira.
Rita Pereira Carvalho –As Invisíveis, Histórias sobre o trabalho de limpeza(2022)
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Rita Pereira Carvalho (2022)