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Nariz de cera

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

anotações e apontamentos que dizem tudo - de, por e para mim - por si mesmos.

Nariz de cera

26
Ago16

MLP

Cecília

música ligeira portuguesa

 

 

 

Carlos  Paião

(1 de novembro, 1957 — 26 de agosto, 1988)

 

 

" 1 Nenhuma tempestade 

tem força suficiente para 

arrancar um nome. 

2 Aquilo que carregas irá 

acompanhar-te para sempre,

3 fará parte até do teu silêncio.

4 Rapara em ti, 

5 repara em quanto do que te

constitui é eterno e imortal. " 

 

 

José Luís Peixoto - Em Teu Ventre (2015)

Quetzal Editores 

 

23
Ago16

bom

Cecília

 

 

João Maria Centeno Gorjão Jorge - Rão Kyao

(23 de Agosto,1947)

 

 

" Nas regiões serenas, nas páginas transparentes do ar, está escrito:

« O que semear o bem colherá o bem! Todas as coisas regressam à sua origem!»"

 

História de Abu-Kir e de Abu-Sir - 501ª Noite 

 

 

 

As Mil e Uma Noites (Alf Laila Wa-Laila)  

Printer Portuguesa para Círculo de Leitores (2007)

 

19
Ago16

supercouraçados

Cecília

" - E s'a guerra continuar?

- Então emitimos votos onde, sem deixar de dar razão ao mais fraco, não negamos a razão do mais forte. E pedimos aos dois países em guerra que declarem solenemente que não fazem guerra um ao outro, mas que procedam a operações de ordem para regulação do conflito. É mais pacífico. Em geral, as operações militares sempre acabam por acabar. Admitimos então que a parte mais forte proceda a uma determinada tomada de território que lhe agrade, desde que não se pronuncie a palavra anexação. No referente à Etiópia fomos terríveis de início e não receámos protestar contra a atitude da Itália. Mas depois de termos desse modo provado o nosso apego ao ideal de justiça, tivemos mesmo que encarar a realidade de frente. É que, digam o que disserem os foliculários com falta de assunto, nós não somos utopistas. Por isso nos contentámos com dar aos Estados membros a liberdade de reconhecer ou não esta conquista. Bela táctica, não acham? Com efeito, as conveniências são respeitadas. Primo, a Sociedade das Nações permanece fiel ao seu ideal, visto que não reconhece, ao menos por agora, a conquista da Etiópia. Secundo, os Estados membros não infringem os seus deveres para com a Sociedade das Nações, uma vez que esta autoriza a reconhecer a conquista da Etiópia, se assim quiserem. Temos, como vêem, uma grande preocupação com a liberdade de pensamento e com a soberania dos Estados membros da Sociedade das Nações ainda não vencidos. Cada um dos Estados que faça o que quiser. Nos daí lavamos as nossas mãos. No fim de contas, o nosso papel é emitir votos prudentes, é votar resoluções hábeis que não desgostem ninguém. A nossa tarefa resume-se a isto: ser anódinos! Cumpriremos essa tarefa com um vigor cada vez maior. (Confidencial:) De resto, aquele négus é bastante antipático. Parece que nao está nada doente, que tudo aquilo é uma comédia. E, além disso, tenho ouvido dizer que vive com dificuldades. É claro que tudo aquilo é muito triste. Mas que se há-de fazer? O que a Etiópia tinha a fazer era servir-se de gases asfixiantes, e a verdade é que não temos culpa de ela ter um exército deplorável, não receio dizê-lo, deplorável. (Deu uma palmada na mesa.) Eis, num breve resumo, senhor ministro, a actividade da Sociedade das Nações. Mas não é tudo. Tenho dois grandes projectos que de certo modo são a carne da minha carne, filhos do meu pensamento e do meu coração, que concebi no silêncio e na meditação. Eis o primeiro projecto, que lhes conto confidencialmente. Se Sir John Cheyne estiver de acordo, pediremos aos grandes países que chamem Humanidade, Concórdia, Paz Internacional e assim por diante a todos os supercouraçados actualmente em construção. O meu segundo projecto consiste em suprimir os soldados e os canhões nas lojas de brinquedos. Desarmemos as crianças! Do ponto de vista moral, as crianças são mais importantes que os pais. O futuro! " 

 

 

Albert Cohen  – Trincapregos (1938)

Tradução de Pedro Tamen 

 

Contexto Editora, Lda., para Círculo de Leitores (outubro,1999)

 

 

 

TRINCAPREGOS

também chamado Dentolas e Olho de Satanás

e Lord High Life e Sultão dos Tossegosos

e Crânio-em-Sela e Pés Pretos

e Chapéu Alto e Bei dos Mentirosos

e Palavra de Honra e Quase Advogado

e Complicador de Processos e Médico de Clisteres

e Alma do Juro e Poço de Astúcia

e Devorador de Patrimónios e Barba de Forquilha

e Pai da Imundície e Capitão dos Ventos 

 

17
Ago16

...

Cecília

" A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez". 

 

 

 

" Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares." 

 

 

 

" - Pai, a mãe morreu?

- Quatrocentas vezes. 

- Como?

- Já vos disse quatrocentas vezes: a você mãe morreu, morreu toda, faz de conta que nunca esteve viva.

- E está enterrada onde?

- Ora, está enterrada em toda a parte." 

 

 

" ... são as esperas que nos fazem envelhecer."

 

 

" Você deve ter medo é de não saber."

 

 

" Aqui é tão longe que Deus se perde no caminho." 

 

 

" Os meus filhos são a minha última vida. 

- Não é assim que você os ajuda. 

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. " 

 

" Derrotado, Ntunzi, ladainhava:

- Eu sei o que isto é... Isto é feitiço...

Era feitiço, sim. Mas não lançado por meu pai. Era o pior dos maus-olhados: aqueles que lançamos sobre nós próprios." 

 

 

 

" Não viver é o que mais cansa." 

 

 

 

" ... quem sai do seu lugar, nunca a si mesmo regressa." 

 

 

" E todo o bom pai enfrenta a mesma tentação: guardar para si os filhos, fora do mundo, longe do tempo." 

 

 

" De que vale ter crença em Deus se perdemos fé nos homens?"

 

 

 

" A política morreu, foram os políticos que a mataram."

 

 

" ... por que motivo Zacaria não se lembrava de nenhuma guerra? Porque ele lutara sempre do lado errado." 

 

 

" A felicidade é uma questão de pontaria." 

 

 

" - O seu avô paterno rezava junto aos rios quando queria pedir chuva. 

- E depois chegava a chover?

- Chove sempre depois. A reza é que pode ser feita com demasiada antecedência. " 

 

 

 

" - Você não sabe nada, meu irmão. Você tem idade para ser enganado, eu já tenho idade para ser aldrabado." 

 

 

" Você viu como o luxo escandaloso se encosta na miséria? " 

 

 

" Ntunzi responderia que Jesusalém se fundava num logro criado por um doente. Era mentira, sim. Porém, se temos de viver na mentira que seja na nossa própria mentira. Afinal, o velho Silvestre não mentia assim tanto na sua visão apocalíptica. Porque ele tinha razão: o mundo termina quando já não somos capazes de o amar. 

  E a loucura nem sempre é uma doença. Por vezes é um ato de coragem. O teu pai, caro Mwanito, teve essa coragem que nos falta a nós. Quando tudo estava perdido, ele começou tudo de novo. Mesmo que esse tudo aos outros parecesse nada. 

  Eis a lição que aprendi em Jesusalém: a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida." 

 

 

" Não sei se Marcelo foi o amor da minha vida. Mas foi uma vida inteira de amor. Quem ama, ama para sempre. Nunca faças nada para sempre. Exceto amar."

 

 

" Uma tarde levou a turma a visitar o local onde um jornalista que denunciara os corruptos tinha sido assassinado. No local, não havia monumento nem nenhum sinal de homenagem oficial. Apenas uma árvore, um cajueiro eternizava a coragem de quem arriscou a vida contra a mentira. 

- Deixemos flores neste passeio para limpar o sangue; flores para lavar a vergonha." 

 

 

 

Mia Couto  – Jesusalém (2009)

 

Coleção Essencial Livros RTP e LeYa (2016)

 

 

08
Ago16

Little Boy / Fat Man

Cecília

" Não ouviste o que o piloto disse acerca da bomba atómica? Estão todos mortos. 

(...) 

O Bucha persistia.

- Estamos numa ilha, não é verdade? 

(...)

O Bucha insistia:

- Quantos seremos nós? 

(...) 

Rafael acenou com o búzio.

- Caluda! Silêncio! Prestem atenção! 

Prosseguiu no silêncio nascido do seu triunfo. 

- Há ainda outra coisa. Podemos ajudá-los a descobrirem-nos. Se um barco se aproximar da ilha, pode acontecer que não dêm por nós. De maneira que temos de fazer fumo no alto da montanha. Temos de fazer uma fogueira. 

- Uma fogueira! Vamos fazer uma fogueira!

Num abrir e fechar de olhos, metade dos rapzes estava de pé. Jack berrava no meio deles, esquecido do búzio.

- Vamos! Sigam-me! 

(...)

Rafael também se pusera de pé, pedindo silêncio, mas ninguém o escutava. Num minuto, a turba deslocou-se em direção ao centro da ilha e abalou atrás de Jack. Até os mais miúdos partiam e procuravam (...). Rafael ficou abandonado, segurando o búzio, sem mais ninguém a não ser o Bucha. 

O Bucha recuperava a respiração.

- Como miúdos! - comentou ele com desprezo. - Agem como um bando de miúdos! (...) Que é que eles pensam fazer no alto daquela montanha? 

(...)

Jack apontou subitamente:

- Os óculos!  Usem-nos como se fossem duas lentes! 

O Bucha viu-se rodeado antes que tivesse tempo de recuar. (...)

(...)

Cheio de audácia e indignado, o Bucha arrebatou o búzio:

- Foi isso o que eu disse! Falei das nossas reuniões e do resto e tu disseste que me calasse... 

A sua voz ganhava o lamento de virtuosa recriminação. (...) Aí tendes a vossa fogueira! (...) O Bucha relanceou nervosamente aquele inferno e acariciou o búzio.

- Agora temos de deixar arder tudo. E era esta a nossa lenha!

(...) 

O Bucha irritou-se.

- (...) Ora prestem atenção! A primeira coisa que devíamos ter feito era abrigos lá em baixo na praia. À noite, não é assim tão quente. Mas logo que Rafael falou numa fogueira, lá foram todos em berrata até ao cimo da montanha. Como um bando de miúdos! 

Agora escutavam todos a tirada. 

- Como quereis que vos salvem se não dais primazia ao que deve vir primeiro e se não fazeis o que importa? (...) Dissestes que Rafael era o chefe e não lhe dais tempo para pensar. E quando ele diz qualquer coisa, correis logo atrás como, como ... (...) . E isto ainda não é tudo. Os miúdos. Os pequenos. Quem reparou neles? Quem sabe quantos há aqui? 

Rafael deu subtiamente um passo em frente:

- Eu disse-te. Eu disse-te que tomasses nota dos nomes! 

- Como é que eu o podia fazer? (...) Como, se estava sozinho? Eles esperaram dois minutos, depois meteram-se na água; embrenharam-se nas montanhas; espalharam-se por toda a parte. (...)

Rafael passou a língua pelos lábios lívidos:

- Então tu não sabes quantos somos aqui? 

(...) e então os miúdos andavam perdidos por aí, no sítio onde está o fogo? Como é que eu sei se ainda andam por lá?

O Bucha ergueu-se e apontou o fumo  e as chamas. (...)

- Aquele miúdo... (...) o que tinha uma marca na cara, não o vejo.  Onde estará ele agora?  

Caiu sobre a turba um silêncio de morte. 

(...)

- Podíamos cair de repente sobre um... pintar a cara para que não nos vissem... cercá-los, talvez, e então... 

A indignação tirou todo o autodomínio a Rafael: 

- Eu estava a falar do fumo! Não queres que te salvem? Tudo o que tu sabes falar é de porcos, porcos, porcos! 

- Mas nós queremos carne! 

(...)

Simão falava-lhe quase ao ouvido. (...) 

- Hás-de voltar ao sítio de donde vieste. (...)

Rafael disse secamente:

És pateta. 

Simão abanou a cabeça (...) - Não. Não sou. Simplesmente, eu penso que hás-de voltar e bem. 

Durante um momento nada mais se disseram. Depois, subitamente, sorriram-se um para o outro. (...) 

- O problema é que não temos gente que chegue para uma fogueira. Temos de tratar o Samuel e o Erico como um só turno. Fazem tudo juntos... 

- Claro. 

- Mas não está certo. Não percebes? Deviam constituir dois turnos. 

Rafael considera esta proposta e compreende. Sentia-se vexado por reconhecer quão pouco ele pensava como um adulto e suspira de novo. A ilha ia de mal a pior. 

O Bucha contempla a chama.

- Daqui a bocado precisamos de outro ramo verde.

Rafael rola na areia. 

- Bucha. Que havemos de fazer?

- Temos de continuar sem ele.

- Mas... a fogueira. (...) Mas ninguém percebe a necessidade do fogo. Se alguém te atirasse uma corda, quando estivesses a afogar-te... Se um médico te dissesse: toma isso, senão morres... Tu, tu fazia-lo, não é verdade?

- Pois claro que sim.

-Porque é que eles não vêm isto? Porque é que eles não percebem? Sem o fumo para dar sinal nós morreremos aqui! 

(...)

- Não conseguimos manter uma fogueira acesa. E eles estão-se minando. E o que é mais... - Fita intensamente o rosto perlado de suor do Bucha. - E o que é mais, eu, às vezes, não quero. Imagina que eu fazia como os outros... que também não ligava. O que seria feito de nós? 

O Bucha tira os óculos, profundamente perturbado.

- Não sei, Rafael. Temos de continuar, apenas isto. 

(...)

- Ora bem - continua o Deus das Moscas (...) - Não há ninguém que te ajude. Só eu. E eu sou a Fera. (...) Eu sou parte de ti próprio. Aproxima-te, aproxima-te ainda mais!  Sou eu o motivo por que não se pode ir mais além? Porque é que as coisas são o que são? (...) A cabeça de Simão vacila (...). 

Muito antes de Rafael e o Bucha chegarem à fala com o bando de Jack, podiam ouvir o alvoroço da festa. (...) Uma fogueira ardia no rochedo e gordura escorria da carne assada para o meio de chamas invisíveis. Todos os rapazes da ilha, excepto o Buda, o Rafael, o Simão e os dois que olhavam pelo animal, se encontravam agrupados no capim. Riam, cantavam, deitavam-se, agachavam-se, ou estavam de pé na relva, agarrando a carne com ambas as mãos. (...). Antes de a festa começar, tinham trazido um grande cepo para o centro do relvão, e Jack, pintado e engrinaldado, sentara-se ali como um ídolo. (...) 

Jack ergue-se e acena com a lança:

- Dêem-lhes carne. 

Os rapazes que tinham o espeto oferecem um naco suculento a Rafael e outro ao Bucha. Eles aceitam a dávida com água na boca. (...)

Jack acena de novo com a lança:

- Comeram todos tanto quanto queriam? (...) - Quem quer vir para a minha tribo? 

Rafael faz um movimento súbito (...) 

- Eu dei-vos comida - começa Jack - e os meus caçadores hão-de proteger-vos da fera. Quem quer vir para a minha tribo? 

- Eu sou o chefe - interpõe Rafael - , porque me escolhestes. E íeis manter a fogueira acesa. Agora correis atrás da comida...

- Foi o que tu também fizeste! - grita Jack. - Olha para esse osso que tens nas mãos! 

Rafel cora violentamente. 

- Eu disse que vocês eram caçadores. É o vosso ofício. 

Jack ignora-o mais uma vez. 

- Quem quer vir para a minha tribo e divertir-se? (...) 

Jack salta para o areal:

- Vamos! Toca a dançar! A nossa dança! (...)

Os caçadores empunham as lanças, os cozinheiros agarram nos espetos e outros em achas de lenha. Desenha-se um movimento circular e eleva-se um cântico. (...) O Bucha e o Rafael, sob ameaça do céu, sentem o desejo de tomar parte nesta sociedade dementada, mas, de certo modo, segura. (...)

- Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue! 

(...) Alguma coisa rasteja, vinda das bandas da mata. (...) Simão grita qualquer coisa (...) O grande vagalhão da maré alastra pela ilha e a água engrossa. Brandamente, engrinaldo de curiosas criaturas brilhantes, o corpo de Simão, figura ârgentea sob as constelações firmes, voga para o mar largo. (...) 

Eu vim por causa do fogo - explica Rafael - e por causa dos óculos do Bucha. 

O grupo move-se e gargalhadas retinem abertamente (...) 

Jack, identificável pela personalidade e cabeleira ruiva, avançava das bandas da mata. (...) berra acima do vozerio: 

- Vai-te embora, Rafael. Não saias da tua ponta. Esta é a parte que me pertence e à minha tribo. Deixa-me em paz. 

Os apupos morrem. 

- Tu pinaste os óculos ao Bucha - acusa Rafael, ofegante. - Tens de os devolver. 

- Tenho de os devolver? Quem mo manda? 

A irritação de Rafael rebenta: 

- Mando eu! Votaste em mim como chefe. Não ouviste o búzio? Fizeste uma malandrice... nós ter-te-íamos dado o fogo se no-lo pedisses... (...) Poderias ter fogo sempre que quisesses! Mas não! Preferiste ir às escondidas, como um ladrão, e roubaste os óculos ao Bucha. 

- Diz isso outra vez. 

- Ladrão! Ladrão! 

O Bucha grita:

-Rafael! Tem cuidado comigo! 

(...) 

- Escutai. Nós viemos aqui dizer isto. Primeiro tendes de devolver os óculos ao Bucha. Sem eles, não pode ver. Não é a maneira de brincar... 

A tribo dos selvagens pintados solta outra risadinha (...) O Bucha agacha-se de novo. Depois os gémeos ficam prostrados no solo, atónitos, e a tribo faz um cerco à sua roda. Jack volta-se para Rafael e fala entre dentes:

- Vês? Eles fazem o que eu disser.

(...) e a tribo observa Rafael para ver o que ele faria. Ele conta-os sob a franja, vislumbra o fogo ineficiente.

A sua irritação estala. Berra para Jack:

- Tu és uma besta, um canalha e um ladrão! 

(...) A voz do Bucha chega até Rafael:

- Deixa-me falar. 

(...) - Tenho que dizer isto. Procedeis como um bando de garotos. 

As vaias sobem de tom e morrem de novo, quando  o Bucha levanta o búzio mágico e alvo.

- Que vale mais: ser um bando de pretos mascarados, como vós sois, ou ser sensato como Rafael? 

Um alto clamor eleva-se do meio dos selvagens. O Bucha grita de novo:

- Que é melhor: ter um regulamento e chegar a acordo, ou andar a caçar e a matar? 

De novo o clamor e o zunido. 

Rafael grita contra a vozearia:

- Que é melhor: lei e salvamento, ou caçadas e desordem? 

Agora Jack também berrava (...). Desenhava-se a intenção de um ataque (...) Rafael ouve o pedregulho enorme muito antes de o ver (...) enquanto a tribo guincha (...) O pedregulho desfere, do queixo ao joelho, um golpe fulminante no Bucha: o búzio explode em milhares de alvas estilhas e deixa de existir. (...) O Bucha cai de uma altura de quarenta pés e estatela-se de costas naquele quadrado, no rochedo vermelho, do mar. A cabeça racha e sai dela uma massa avermelhada. Os braços e pernas do Bucha torcem-se um pouco, como um porco ao morrer. Depois o mar gorgoleja de novo num lento e longo suspiro, (...) e quando se retrai, num novo sorvo, o corpo do Bucha tinha desaparecido. (...) 

De súbito, Jack salta do meio da tribo e começa a gritar violentamente:

- Vês? Vês? É isto o que tu apanhas! Era o que eu dizia! Já não há tribo para ti! O búzio foi-se... 

Corre para diante, agachando-se:

- Sou eu o chefe! 

Maldosamente, com intenção declarada, arremessa a lança contra Rafael.  (...)

- Tens de te ir embora, Rafael. Agora vai-te embora (...)

- Tens de te ir embora porque não é seguro (...) 

Quando Rafael fala de novo, a sua voz é baixa e parece faltar-lhe o fôlego.

- Mas o que é que eu fiz? Eu gostava dele... e queria que nos salvassem... 

(...) 

- Escuta, Rafael. O bom senso já não importa. Isso acabou... (...) 

- ... tens de te ir embora para teu bem. (...)

- Odeiam-te, Rafael. Vão liquidar-te. 

- Vão dar-te caça amanhã. (...)

Rafael puxa o cabelo emaranhado (...)

- Pensa.

Qual era a coisa mais sensata a fazer?

(...) Haviam-no cercado de fumo e pegado fogo à ilha. (...)

Os segundos prolongam-se. Rafael olha a direito nos olhos do selvagem. (...) solta um grito de terror, de raiva e desespero. (...) E eles corriam todos, gritavam todos doidamente. (...) Debaixo dele rendem-se à fadiga as pernas (...) Vai a terra, rolando e rebolando na areia quente, agachando-se, de braço erguido, num gesto de prevenção, tentando gritar um pedido de misericórdia. (...)

Cambaleia (...) Vê um linho branco (...). 

Um oficial de Marinha, de pé, fita Rafael (...). 

- Há alguns adultos... alguns crescidos convosco?

Rafael abana a cabeça em silêncio (...). 

- Brincadeiras e jogos - diz o oficial. 

(...)

O oficial sorri, encorajador, para Rafael:

- Nós vimos o vosso fumo. Que têm estado vocês a fazer? Uma guerra? 

Rafael anuiu com a cabeça (...). 

O ofcial volta-se para Rafael:

- Vamos embarcá-los todos. Quantos sois aqui? 

Rafael abana a cabeça. O oficial desvia a vista para o grupo de rapazes pintados: 

- Quem é o chefe? 

- Eu - exclama Rafael em voz alta. 

Um rapazelho, com o frangalho de um extraordinário boné negro a cobrir-lhe a grenha ruiva e que trazia preso à cintura o que fora um par de óculos, dá um passo em frente, muda de opinião e detém-se. 

- Vimos o vosso fumo. E não sabeis quantos sois? 

- Não, senhor. 

- Eu pensava - profere o oficial ao imaginar a busca que tem diante de si - , eu pensava que um grupo de rapazes (...) seria capaz de fazer bem melhor do que isto... Quero eu dizer.... 

- Era assim ao princípio - volve Rafael - , antes de as coisas... 

Pára. 

- Então estávamos todos unidos... 

(...)

Rafael olha para ele e emudece. (...). a ilha estava carbonizada como lenha velha, Simão estava morto e Jack tinha... (...) Rafael chora o fim da inocência, o negrume do coração do homem (...)" 

 

 

William Golding  – O Deus das Moscas (1954)

 

Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)

 

 

05
Ago16

Norma Jean Mortenson

Cecília

 Marilyn Monroe

(1 de junho, 1926 – 5 de agosto, 1962)

 

 

 

 

"Tinha duas faces como a lua
Uma que toda a gente conhece
e outra (a que nunca se vê, a que não reflecte o sol)
e que ninguém (ou quase ninguém) está interessado em conhecer
É esse o teu lado que me fascina
que sempre me fascinou
Pousavas sobre as coisas (uma bicicleta, os lábios de Yves Montand)
como uma borboleta
e não pesavas mais do que isso
e o écran ficava amarelo quando te punhas a sacudir
o pólen que trazias agarrado nas mãos
Eu que sempre gostei de ir ao fundo de tudo
(e acabo por me ficar pela superfície de tudo)
custa-me a entender como é que tu ao passares a língua
pela casca de um fruto carnudo
lhe ficavas logo a conhecer o sabor ácido da polpa

90-60-90…

São essas rigorosamente as medidas do universo
em que te movias
as medidas do pesadelo
que faz com que de manhã o céu acorde com olheiras enormes
e eu todo partido como se tivesse levado uma grande surra
Vejo-te a navegar num mar onde milhares de homens
desaguam desesperadamente
O mar está encapelado
Nem me dou conta que está morta –
Subiram o pano
A sessão da tarde vai começar…
Gostaria de me encontrar depois contigo
num dos manicómios desta cidade
(há vários e vai ser difícil escolher)
Talvez nos pudéssemos dedicar aí a cultivar rosas
amarelas e fragrantes
nos jardins da nossa inconsistência"

 

 

Jorge Sousa Braga, in "A lua e Marilyn" 

 

O Poeta Nu, Fenda (1999)

 

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