" Não ouviste o que o piloto disse acerca da bomba atómica? Estão todos mortos.
(...)
O Bucha persistia.
- Estamos numa ilha, não é verdade?
(...)
O Bucha insistia:
- Quantos seremos nós?
(...)
Rafael acenou com o búzio.
- Caluda! Silêncio! Prestem atenção!
Prosseguiu no silêncio nascido do seu triunfo.
- Há ainda outra coisa. Podemos ajudá-los a descobrirem-nos. Se um barco se aproximar da ilha, pode acontecer que não dêm por nós. De maneira que temos de fazer fumo no alto da montanha. Temos de fazer uma fogueira.
- Uma fogueira! Vamos fazer uma fogueira!
Num abrir e fechar de olhos, metade dos rapzes estava de pé. Jack berrava no meio deles, esquecido do búzio.
- Vamos! Sigam-me!
(...)
Rafael também se pusera de pé, pedindo silêncio, mas ninguém o escutava. Num minuto, a turba deslocou-se em direção ao centro da ilha e abalou atrás de Jack. Até os mais miúdos partiam e procuravam (...). Rafael ficou abandonado, segurando o búzio, sem mais ninguém a não ser o Bucha.
O Bucha recuperava a respiração.
- Como miúdos! - comentou ele com desprezo. - Agem como um bando de miúdos! (...) Que é que eles pensam fazer no alto daquela montanha?
(...)
Jack apontou subitamente:
- Os óculos! Usem-nos como se fossem duas lentes!
O Bucha viu-se rodeado antes que tivesse tempo de recuar. (...)
(...)
Cheio de audácia e indignado, o Bucha arrebatou o búzio:
- Foi isso o que eu disse! Falei das nossas reuniões e do resto e tu disseste que me calasse...
A sua voz ganhava o lamento de virtuosa recriminação. (...) Aí tendes a vossa fogueira! (...) O Bucha relanceou nervosamente aquele inferno e acariciou o búzio.
- Agora temos de deixar arder tudo. E era esta a nossa lenha!
(...)
O Bucha irritou-se.
- (...) Ora prestem atenção! A primeira coisa que devíamos ter feito era abrigos lá em baixo na praia. À noite, não é assim tão quente. Mas logo que Rafael falou numa fogueira, lá foram todos em berrata até ao cimo da montanha. Como um bando de miúdos!
Agora escutavam todos a tirada.
- Como quereis que vos salvem se não dais primazia ao que deve vir primeiro e se não fazeis o que importa? (...) Dissestes que Rafael era o chefe e não lhe dais tempo para pensar. E quando ele diz qualquer coisa, correis logo atrás como, como ... (...) . E isto ainda não é tudo. Os miúdos. Os pequenos. Quem reparou neles? Quem sabe quantos há aqui?
Rafael deu subtiamente um passo em frente:
- Eu disse-te. Eu disse-te que tomasses nota dos nomes!
- Como é que eu o podia fazer? (...) Como, se estava sozinho? Eles esperaram dois minutos, depois meteram-se na água; embrenharam-se nas montanhas; espalharam-se por toda a parte. (...)
Rafael passou a língua pelos lábios lívidos:
- Então tu não sabes quantos somos aqui?
(...) e então os miúdos andavam perdidos por aí, no sítio onde está o fogo? Como é que eu sei se ainda andam por lá?
O Bucha ergueu-se e apontou o fumo e as chamas. (...)
- Aquele miúdo... (...) o que tinha uma marca na cara, não o vejo. Onde estará ele agora?
Caiu sobre a turba um silêncio de morte.
(...)
- Podíamos cair de repente sobre um... pintar a cara para que não nos vissem... cercá-los, talvez, e então...
A indignação tirou todo o autodomínio a Rafael:
- Eu estava a falar do fumo! Não queres que te salvem? Tudo o que tu sabes falar é de porcos, porcos, porcos!
- Mas nós queremos carne!
(...)
Simão falava-lhe quase ao ouvido. (...)
- Hás-de voltar ao sítio de donde vieste. (...)
Rafael disse secamente:
És pateta.
Simão abanou a cabeça (...) - Não. Não sou. Simplesmente, eu penso que hás-de voltar e bem.
Durante um momento nada mais se disseram. Depois, subitamente, sorriram-se um para o outro. (...)
- O problema é que não temos gente que chegue para uma fogueira. Temos de tratar o Samuel e o Erico como um só turno. Fazem tudo juntos...
- Claro.
- Mas não está certo. Não percebes? Deviam constituir dois turnos.
Rafael considera esta proposta e compreende. Sentia-se vexado por reconhecer quão pouco ele pensava como um adulto e suspira de novo. A ilha ia de mal a pior.
O Bucha contempla a chama.
- Daqui a bocado precisamos de outro ramo verde.
Rafael rola na areia.
- Bucha. Que havemos de fazer?
- Temos de continuar sem ele.
- Mas... a fogueira. (...) Mas ninguém percebe a necessidade do fogo. Se alguém te atirasse uma corda, quando estivesses a afogar-te... Se um médico te dissesse: toma isso, senão morres... Tu, tu fazia-lo, não é verdade?
- Pois claro que sim.
-Porque é que eles não vêm isto? Porque é que eles não percebem? Sem o fumo para dar sinal nós morreremos aqui!
(...)
- Não conseguimos manter uma fogueira acesa. E eles estão-se minando. E o que é mais... - Fita intensamente o rosto perlado de suor do Bucha. - E o que é mais, eu, às vezes, não quero. Imagina que eu fazia como os outros... que também não ligava. O que seria feito de nós?
O Bucha tira os óculos, profundamente perturbado.
- Não sei, Rafael. Temos de continuar, apenas isto.
(...)
- Ora bem - continua o Deus das Moscas (...) - Não há ninguém que te ajude. Só eu. E eu sou a Fera. (...) Eu sou parte de ti próprio. Aproxima-te, aproxima-te ainda mais! Sou eu o motivo por que não se pode ir mais além? Porque é que as coisas são o que são? (...) A cabeça de Simão vacila (...).
Muito antes de Rafael e o Bucha chegarem à fala com o bando de Jack, podiam ouvir o alvoroço da festa. (...) Uma fogueira ardia no rochedo e gordura escorria da carne assada para o meio de chamas invisíveis. Todos os rapazes da ilha, excepto o Buda, o Rafael, o Simão e os dois que olhavam pelo animal, se encontravam agrupados no capim. Riam, cantavam, deitavam-se, agachavam-se, ou estavam de pé na relva, agarrando a carne com ambas as mãos. (...). Antes de a festa começar, tinham trazido um grande cepo para o centro do relvão, e Jack, pintado e engrinaldado, sentara-se ali como um ídolo. (...)
Jack ergue-se e acena com a lança:
- Dêem-lhes carne.
Os rapazes que tinham o espeto oferecem um naco suculento a Rafael e outro ao Bucha. Eles aceitam a dávida com água na boca. (...)
Jack acena de novo com a lança:
- Comeram todos tanto quanto queriam? (...) - Quem quer vir para a minha tribo?
Rafael faz um movimento súbito (...)
- Eu dei-vos comida - começa Jack - e os meus caçadores hão-de proteger-vos da fera. Quem quer vir para a minha tribo?
- Eu sou o chefe - interpõe Rafael - , porque me escolhestes. E íeis manter a fogueira acesa. Agora correis atrás da comida...
- Foi o que tu também fizeste! - grita Jack. - Olha para esse osso que tens nas mãos!
Rafel cora violentamente.
- Eu disse que vocês eram caçadores. É o vosso ofício.
Jack ignora-o mais uma vez.
- Quem quer vir para a minha tribo e divertir-se? (...)
Jack salta para o areal:
- Vamos! Toca a dançar! A nossa dança! (...)
Os caçadores empunham as lanças, os cozinheiros agarram nos espetos e outros em achas de lenha. Desenha-se um movimento circular e eleva-se um cântico. (...) O Bucha e o Rafael, sob ameaça do céu, sentem o desejo de tomar parte nesta sociedade dementada, mas, de certo modo, segura. (...)
- Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue!
(...) Alguma coisa rasteja, vinda das bandas da mata. (...) Simão grita qualquer coisa (...) O grande vagalhão da maré alastra pela ilha e a água engrossa. Brandamente, engrinaldo de curiosas criaturas brilhantes, o corpo de Simão, figura ârgentea sob as constelações firmes, voga para o mar largo. (...)
Eu vim por causa do fogo - explica Rafael - e por causa dos óculos do Bucha.
O grupo move-se e gargalhadas retinem abertamente (...)
Jack, identificável pela personalidade e cabeleira ruiva, avançava das bandas da mata. (...) berra acima do vozerio:
- Vai-te embora, Rafael. Não saias da tua ponta. Esta é a parte que me pertence e à minha tribo. Deixa-me em paz.
Os apupos morrem.
- Tu pinaste os óculos ao Bucha - acusa Rafael, ofegante. - Tens de os devolver.
- Tenho de os devolver? Quem mo manda?
A irritação de Rafael rebenta:
- Mando eu! Votaste em mim como chefe. Não ouviste o búzio? Fizeste uma malandrice... nós ter-te-íamos dado o fogo se no-lo pedisses... (...) Poderias ter fogo sempre que quisesses! Mas não! Preferiste ir às escondidas, como um ladrão, e roubaste os óculos ao Bucha.
- Diz isso outra vez.
- Ladrão! Ladrão!
O Bucha grita:
-Rafael! Tem cuidado comigo!
(...)
- Escutai. Nós viemos aqui dizer isto. Primeiro tendes de devolver os óculos ao Bucha. Sem eles, não pode ver. Não é a maneira de brincar...
A tribo dos selvagens pintados solta outra risadinha (...) O Bucha agacha-se de novo. Depois os gémeos ficam prostrados no solo, atónitos, e a tribo faz um cerco à sua roda. Jack volta-se para Rafael e fala entre dentes:
- Vês? Eles fazem o que eu disser.
(...) e a tribo observa Rafael para ver o que ele faria. Ele conta-os sob a franja, vislumbra o fogo ineficiente.
A sua irritação estala. Berra para Jack:
- Tu és uma besta, um canalha e um ladrão!
(...) A voz do Bucha chega até Rafael:
- Deixa-me falar.
(...) - Tenho que dizer isto. Procedeis como um bando de garotos.
As vaias sobem de tom e morrem de novo, quando o Bucha levanta o búzio mágico e alvo.
- Que vale mais: ser um bando de pretos mascarados, como vós sois, ou ser sensato como Rafael?
Um alto clamor eleva-se do meio dos selvagens. O Bucha grita de novo:
- Que é melhor: ter um regulamento e chegar a acordo, ou andar a caçar e a matar?
De novo o clamor e o zunido.
Rafael grita contra a vozearia:
- Que é melhor: lei e salvamento, ou caçadas e desordem?
Agora Jack também berrava (...). Desenhava-se a intenção de um ataque (...) Rafael ouve o pedregulho enorme muito antes de o ver (...) enquanto a tribo guincha (...) O pedregulho desfere, do queixo ao joelho, um golpe fulminante no Bucha: o búzio explode em milhares de alvas estilhas e deixa de existir. (...) O Bucha cai de uma altura de quarenta pés e estatela-se de costas naquele quadrado, no rochedo vermelho, do mar. A cabeça racha e sai dela uma massa avermelhada. Os braços e pernas do Bucha torcem-se um pouco, como um porco ao morrer. Depois o mar gorgoleja de novo num lento e longo suspiro, (...) e quando se retrai, num novo sorvo, o corpo do Bucha tinha desaparecido. (...)
De súbito, Jack salta do meio da tribo e começa a gritar violentamente:
- Vês? Vês? É isto o que tu apanhas! Era o que eu dizia! Já não há tribo para ti! O búzio foi-se...
Corre para diante, agachando-se:
- Sou eu o chefe!
Maldosamente, com intenção declarada, arremessa a lança contra Rafael. (...)
- Tens de te ir embora, Rafael. Agora vai-te embora (...)
- Tens de te ir embora porque não é seguro (...)
Quando Rafael fala de novo, a sua voz é baixa e parece faltar-lhe o fôlego.
- Mas o que é que eu fiz? Eu gostava dele... e queria que nos salvassem...
(...)
- Escuta, Rafael. O bom senso já não importa. Isso acabou... (...)
- ... tens de te ir embora para teu bem. (...)
- Odeiam-te, Rafael. Vão liquidar-te.
- Vão dar-te caça amanhã. (...)
Rafael puxa o cabelo emaranhado (...)
- Pensa.
Qual era a coisa mais sensata a fazer?
(...) Haviam-no cercado de fumo e pegado fogo à ilha. (...)
Os segundos prolongam-se. Rafael olha a direito nos olhos do selvagem. (...) solta um grito de terror, de raiva e desespero. (...) E eles corriam todos, gritavam todos doidamente. (...) Debaixo dele rendem-se à fadiga as pernas (...) Vai a terra, rolando e rebolando na areia quente, agachando-se, de braço erguido, num gesto de prevenção, tentando gritar um pedido de misericórdia. (...)
Cambaleia (...) Vê um linho branco (...).
Um oficial de Marinha, de pé, fita Rafael (...).
- Há alguns adultos... alguns crescidos convosco?
Rafael abana a cabeça em silêncio (...).
- Brincadeiras e jogos - diz o oficial.
(...)
O oficial sorri, encorajador, para Rafael:
- Nós vimos o vosso fumo. Que têm estado vocês a fazer? Uma guerra?
Rafael anuiu com a cabeça (...).
O ofcial volta-se para Rafael:
- Vamos embarcá-los todos. Quantos sois aqui?
Rafael abana a cabeça. O oficial desvia a vista para o grupo de rapazes pintados:
- Quem é o chefe?
- Eu - exclama Rafael em voz alta.
Um rapazelho, com o frangalho de um extraordinário boné negro a cobrir-lhe a grenha ruiva e que trazia preso à cintura o que fora um par de óculos, dá um passo em frente, muda de opinião e detém-se.
- Vimos o vosso fumo. E não sabeis quantos sois?
- Não, senhor.
- Eu pensava - profere o oficial ao imaginar a busca que tem diante de si - , eu pensava que um grupo de rapazes (...) seria capaz de fazer bem melhor do que isto... Quero eu dizer....
- Era assim ao princípio - volve Rafael - , antes de as coisas...
Pára.
- Então estávamos todos unidos...
(...)
Rafael olha para ele e emudece. (...). a ilha estava carbonizada como lenha velha, Simão estava morto e Jack tinha... (...) Rafael chora o fim da inocência, o negrume do coração do homem (...)"
William Golding – O Deus das Moscas (1954)
Coleção Mil Folhas PÚBLICO (2002)